26 de novembro de 2015

O Princípio Regulador do Culto (2/2)


Adoração vã

Então chegaram ao pé de Jesus uns escribas e fariseus de Jerusalém, dizendo: Por que transgridem os teus discípulos a tradição dos anciãos? Pois não lavam as mãos quando comem pão. Ele, porém, respondendo, disse-lhes: Por que transgredis vós, também, o mandamento de Deus pela vossa tradição? (Mt 15.1-3).

Os fariseus eram líderes religiosos respeitados do povo judeu. Eles criam ter a liberdade de fazer adições aos mandamentos divinos. A lei de Deus continha diversas lavagens cerimoniais para representar a purificação dos impuros. Os fariseus adicionaram outras lavagens para destacar e “aperfeiçoar” a lei de Moisés. Não existe mandamento expresso proibindo essas adições cerimoniais, exceto o Princípio Regulador (Dt 4.2; 12.31). Elas não tinham fundamentação na Palavra de Deus.

Jesus Cristo é o principal defensor do Princípio Regulador. Ele repreendeu fortemente os escribas e fariseus por fazerem adições à lei divina. O que acontece quando homens pecadores acrescentam regras e regulamentos à lei de Deus? Com o passar do tempo, a tradição humana substitui e pretere a lei divina: E assim invalidastes, pela vossa tradição, o mandamento de Deus. (Mt 15.6).

A igreja cristã antiga acrescentou regras e cerimônias próprias ao culto a Deus e degenerou na Igreja Católica Romana pagã e idólatra. Se não mantivermos a linha divisória onde Deus a traçou, então, prova a história, a igreja degenerará posteriormente em algo um pouco mais bizarro que uma seita pagã. A repreensão de Cristo referente aos escribas e fariseus aplica-se hoje a quase todos (os chamados) ramos da igreja cristã: Este povo se aproxima de mim com a sua boca e me honra com os seus lábios, mas o seu coração está longe de mim. Mas, em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos dos homens (Mt 15.8-9).

Outros exemplos

O conceito de que apenas o que Deus ordena em sua Palavra é permitido no culto encontra-se na Bíblia toda. O rei Saul ofereceu um sacrifício ao Senhor sem autorização divina. Deus ordenou aos sacerdotes, e não aos reis, o oferecimento de holocaustos. O reinado foi retirado de Saul e de sua família para sempre (1Sm 13.8-14). Considere o rei Jeroboão que estabeleceu um dia próprio de festa, bem como lugares sagrados e ofertas no “mês que ele tinha imaginado no seu coração” (1Rs 12.32,33). O rei Jeroboão era pragmático. Ele não percebia a necessidade de seguir as ordens expressas do culto a Deus. O livro de Reis apresenta seu culto autônomo e não autorizado — além da idolatria associada a ele —, como o paradigma do falso culto. Se o rei Jeroboão foi considerado ímpio por estabelecer seu dia de festa (dia santo), certamente a mesma designação é aplicável aos papas, bispos e ao povo que estabeleceram o natal, a sexta-feira santa etc.

Paulo, na epístola aos Colossenses, concorda com o ensino do Antigo Testamento referente ao culto. Ele condena quem impõe leis dietéticas judaicas e dias santos à igreja (Cl 2.16). Pelo fato de as leis cerimônias terem sido “sombras” que apontavam para o “corpo” — Jesus Cristo —, elas foram abolidas; e dada a falta de autorização para elas, tornaram-se proibidas. A advertência paulina a respeito da filosofia humana é o pano de fundo da condenação do falso culto e das leis humanas (legalismo):

Tende cuidado, para que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias e vãs sutilezas,segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo (Cl 2.8).

Paulo condena as doutrinas e os mandamentos humanos: Se, pois, estais mortos com Cristo quanto aos rudimentos do mundo, por que vos carregam ainda de ordenanças, como se vivêsseis no mundo, tais como: Não toques, não proves, não manuseies? As quais coisas todas perecem pelo uso, segundo os preceitos e doutrinas dos homens; As quais têm, na verdade, alguma aparência de sabedoria, em devoção voluntária, humildade, e em disciplina do corpo, mas não são de valor algum senão para a satisfação da carne (Cl 2.20-23).

Ele afirma que a adição à Palavra de Deus é apenas uma exibição de “devoção voluntária [e] humildade”. Trata-se de devoção “voluntária” em lugar do culto segundo a vontade de Deus. As leis estabelecidas pelos homens suprimem a liberdade que temos em. A lei moral de Deus é perfeita; adições são desnecessárias. Regras e regulamentos humanos não “concedem honra” ao crente.

Deus concedeu à sua igreja um livro de salmos e um dia santo (o dia do Senhor). Pode o homem aperfeiçoar o culto instituído por Deus? Claro que não. É o ápice da arrogância e estupidez imaginar que homens pecaminosos possam melhorar as ordenanças de Deus: Isso é provocar a Deus, porque reflete sobre sua honra, como se ele não fosse sábio o suficiente para designar a forma do próprio culto. Ele odeia todo fogo estranho oferecido em seu templo (Lv 10.11). Uma simples cerimônia pode, com o passar do tempo, conduzir ao crucifixo. Quem contende pela cruz no batismo, não pode obter também o óleo, o sal e o unguento?12

A necessidade do Princípio Regulador

A história da igreja tem demonstrado que o povo pactual de Deus tem sido desviado, não raro, da simplicidade do puro culto evangélico para todos os tipos de inovações humanas. Dada a natureza humana decaída e sua inclinação ao pecado, era inevitável que a autonomia humana relativa ao culto pervertesse e suplantasse o culto verdadeiro: E as franjas vos serão para que, vendo-as, vos lembreis de todos os mandamentos do Senhor, e os cumprais; e não seguireis o vosso coração, nem após os vossos olhos, pelos quais andais vos prostituindo. Para que vos lembreis de todos os meus mandamentos, e os cumprais, e santos sejais a vosso Deus (Nm 15.39,40).

Muitas pessoas afirmam que o Princípio Regulador divino é bastante restritivo. Declaram que ele confina o espírito humano e reprime a criatividade humana. Dizem tratar-se de uma reação exagerada aos abusos cometidos pelo catolicismo romano. Todavia, examinemos as implicações lógicas da permissão de qualquer coisa não proibida pela Palavra de Deus no culto divino.

A primeira consequência é a substituição da simplicidade e da natureza transcultural do culto puramente evangélico por uma variedade quase infinita de inovações humanas. Pelo fato de Deus não estabelecer mais a linha divisória entre o conteúdo do culto e suas cerimônias, o homem poderia traçar e retraçar essa divisão como lhe agradasse. A igreja desobediente ao Princípio Regulador divino considera impossível impedir o fluxo de novos conceitos e inovações no culto. As denominações presbiterianas e reformadas que abandonaram o Princípio Regulador no final do século XIX e início do século XX provam a veracidade deste ponto. O padrão da perversão segue mais ou menos dessa forma: Inicialmente, hinos concebidos por seres humanos (não ordenados) são cantados em conjunto com os salmos inspirados por Deus (ordenados); a seguir, em uma geração ou duas, os salmos são completamente substituídos por hinos ou por salmos parafraseados ao extremo.

Os hinos antigos, após certo tempo, são substituídos por composições avivalistas “carismáticas”. No início, as igrejas reformadas cantavam os salmos sem acompanhamento musical, pois os instrumentos foram usados apenas no período do templo e, portanto, deixaram de ser usados como um aspecto da lei cerimonial. Muitas igrejas reformadas abandonaram o cântico de salmos a capella e passaram a usar órgãos. Então, dentro de uma geração ou duas as igrejas começaram a usar outros instrumentos, orquestras e até mesmo grupos de rock. Essas inovações descritas são apenas a ponta do iceberg. Pode-se encontrar também nas igrejas chamadas presbiterianas e reformadas: celebração de dias santos (Natal, Páscoa etc.), corais, liturgias complexas, dança litúrgica, grupos de rock, peças de teatro, vídeos de rock, calendário litúrgico, figuras de Cristo, cruzes etc.

Caso se dê ao homem pecador autonomia para escolher como cultuar, o padrão histórico é claro. O ser humano preferirá o culto centrado no homem. O homem pecador é sempre atraído pelo entretenimento (daí a popularidade das “palmas”, e o “pisar forte” do estilo de culto “carismático”, grupos de rock, peças de teatro, corais, solos musicais, e cantores populares e sertanejos13 etc.) e pelo ritual e pompa (catedrais, incensos, velas, sinos, dias santos, vestimentas papistas, liturgias etc.). Quando as inovações humanas terão fim? Elas não cessarão até que a igreja obedeça ao Princípio Regulador do Culto. Deus ordenou um mandamento que o homem não pode ignorar: “[O] modo aceitável de adorar o verdadeiro Deus é instituído por ele mesmo, e é tão limitado pela sua própria vontade revelada, que ele não pode ser adorado segundo as imaginações e invenções dos homens [...] nem sob qualquer representação visível, ou de qualquer outro modo não prescrito nas Santas Escrituras”.14 O falso culto tem origem na mente humana, de acordo com sua imaginação. O culto verdadeiro origina-se na mente de Deus e é revelado na Bíblia:

Mas isto lhes ordenei, dizendo: Dai ouvidos à minha voz, e eu serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo; e andai em todo o caminho que eu vos mandar, para que vos vá bem. Mas não ouviram, nem inclinaram os seus ouvidos, mas andaram nos seus próprios conselhos, no propósito do seu coração malvado; e andaram para trás, e não para diante (Jr 7.23,24).

Calvino, no comentário sobre Jeremias, usou este versículo para condenar todas as inovações perversas do culto papal:

Além do mais, caso se considere a origem de todo o culto papal, perceber-se-á que os primeiros a conceber superstições tão estranhas, foram impelidos apenas por sua audácia e presunção, a fim de poder calcar sob os pés a Palavra de Deus. Portanto, todas as coisas foram corrompidas; porque eles colocaram em operação todas as invenções de seu cérebro. Vemos que os papistas são tão apegados a seus erros até o dia de hoje que preferem a si mesmos e às suas quinquilharias que a Deus. E o mesmo acontece com todos os hereges. O que se pode fazer? Como disse, a obediência deve ser mantida como base da verdadeira religião. Caso desejemos render o culto aprovado por Deus, aprendamos a lançar fora tudo o que é nosso, para que a autoridade divina prevaleça sobre todas as nossas razões.15 

O VERDADEIRO CULTO

Apenas o que Deus ordena em sua Palavra é permitido;
Culto centrado em Deus;
O conteúdo do culto é a Palavra de Deus objetiva;
O culto permanece puro, simples e sem adulteração;
O culto baseado na Palavra de Deus possui parâmetros limitados;
Completamente bíblico;
O culto evangélico puro é transcultural. Desconsiderando-se as barreiras linguísticas, membros de igrejas fiéis ao Princípio Regulador podem visitar igrejas da mesma mentalidade em qualquer lugar do mundo e, imediatamente, sentir-se bem e em casa. No século XVII, puritanos ingleses ou americanos, presbiterianos escoceses ou irlandeses e holandeses reformados cultuavam a Deus de modo muito similar. Isso não resultou de algum ato de conformidade, mas porque criam no Princípio Regulador e obedeciam a ele. No futuro, quando a doutrina e o culto puros forem revividos, e nações inteiras forem convertidas e entrarem na aliança estabelecida por Deus, a natureza transcultural do puro culto evangélico será muito útil e importante para turistas e homens de negócio;
Historicamente, o culto das igrejas reformadas e presbiterianas era puro, até ser abandonado ou redefinido a ponto de se tornar insignificante;
O culto bíblico é centrado em Deus e em sua Palavra;
Os homens têm liberdade sob a Palavra de Deus;
O puro culto evangélico incentiva o ecumenismo bíblico e a comunidade.

O FALSO CULTO

Tudo o que não é expressamente condenado pela Bíblia é permitido;
Conduz ao culto centrado no homem;
O culto se torna cada vez mais subjetivo ou místico;
O culto é alterado, evolui e é adulterado por tradições humanas;
As formas e o conteúdo do culto público são teoricamente infinitos;
Basicamente pragmático: o que aparentemente funciona e agrada às pessoas será usado;
O falso culto alimenta a autonomia humana pecaminosa. Portanto, ele é uma mistura de paganismo e cristianismo. Pelo fato de possuir teoricamente opções infinitas, as pessoas têm de adaptar, aprender e ajustar o falso culto a cada circunstância cultural e denominacional. Os anglicanos altamente litúrgicos provavelmente se sentem desconfortáveis com os cultos sem programação prévia das comunidades evangélicas de negros. Existem milhares de hinários e de liturgias diferentes. Há grupos de rock e de teatro, orquestras, declamação de poesia, vídeos, apresentações de palhaços, comediantes, humoristas, talkshows, danças litúrgicas, recitais de órgão, dias santos diversos e calendários litúrgicos diferentes etc. 
O falso culto fragmenta a igreja;
Historicamente, isso tem levado a igreja ao declínio, à heresia e idolatria. A igreja apostólica degenerou posteriormente no papismo;
O culto centrado no homem tem por norte o ser humano e seus sentidos. Daí sua degeneração no entretenimento ou nas cerimônias e nos rituais pomposos;
Os homens perdem a liberdade sob seu padrão mutável e arbitrário;
O falso culto divide a igreja em milhares de facções. Pelo fato de o conteúdo e estilo do culto “evoluírem” e se modificarem, os membros mais velhos das igrejas são separados dos mais novos.

A palavra liturgia procede do vocábulo grego “leiturgia”, e significa “o trabalho ou serviço pessoal”. Portanto, em certo sentido, todo o culto cristão é litúrgico. Ao mencionar a liturgia em sentido negativo, faço referência à liturgia usada, por exemplo, pelos católicos romanos, episcopais/anglicanos, luteranos e ortodoxos russos (dentre outros).

Em sentido negativo, faço referência à liturgia baseada nas tradições eclesiásticas e humanas, por exemplo: o uso obrigatório de livros de oração, do calendário litúrgico, de vestimentas sacerdotais especiais, velas, incensos, dias santos, ajoelhar para receber a comunhão, catedrais, figuras de Cristo e dos santos, música para a igreja, corais etc. The Book of Common Order [O livro de ordem comum] designado pelos historiadores como a liturgia de Knox, foi usado pelos escoceses até 1645. Ele tomava por base a ordem do culto das igrejas reformadas de Estrasburgo, Frankfurt e Genebra. A atitude de John Knox e dos primeiros presbiterianos para com as “orações comuns” da Order [Ordem] era limitar seu uso ao treinamento dos ignorantes na arte da oração extemporânea:

O uso contínuo e imperioso da liturgia desarmoniza com o espírito dos reformadores, que confiavam na inspiração do Espírito Santo na oração.16 Os substitutos sem formação dos ministros — que requeriam essas muletas mentais, como o Book of Discipline [Livro de disciplina] — admitiam: “até atingir maior perfeição...”. Em termos similares, o bem instruído historiador Calderwood declara: “Ninguém está preso às orações desse livro; elas foram estabelecidas apenas como exemplos… Colocadas como modelos”.17




NOTAS:

12. Thomas Watson, A Body of Divinity (London: Passmore & Alabaster, [1692]1881), p. 267.
13 No original a referência é ao estilo “country” de música, o equivalente em popularidade ao estilo sertanejo nacional. [N. do T.]
14. Confissão de fé de Westminster, XXI.I.
15. Calvin’s Commentary, sobre Jr 9.21-24 (Grand Rapids: Baker, 1989), vol. 9, p. 398 (ênfase adicionada).
16. A expressão “inspiração do Espírito Santo” não significa que os primeiros presbiterianos criam que suas orações eram “sopradas por Deus” e inerrantes como as Escrituras. Ela significa apenas “com o auxílio ou ajuda do Espírito Santo”.
17. J. King Hewison, The Covenanters (Glasgow: 1908), vol. 1, p. 41-4.



AutorBrian Schwertley
Tradução: Rogério Portella