23 de novembro de 2015

O uso das Escrituras na Filosofia (1/2)


O presente artigo é um sumário de uma comunicação realizada por Vollenhoven no dia 06 de janeiro de 1953, durante a conferência da Society for Calvinist Philosophy [Sociedade da Filosofia Calvinista]

Publicado em Mededelingen van het Vereniging voor Calvinistisch Wijsbegeertež Sept. 1953, p. 6-9.

INTRODUÇÃO

O tema mencionado no título deste artigo não deve ser identificado com o outro acerca da Escritura e filosofia. Naturalmente, este último artigo se encontra aqui pressuposto, todavia, nosso uso das Escrituras é algo totalmente diferente das Escrituras em si. Pois as Escrituras são divinas, mas o uso que dela fazemos continua sendo humano; ao passo que as Escrituras são santas, nosso uso permanece sempre contaminado pelo pecado. Ora, o uso das Escrituras, portanto, se encontra no nível da vida humana pecaminosa, envolvida com as Sagradas Escrituras.

Destarte, se tratamos acerca do uso das Escrituras e a filosofia, logo tudo se resume a esta questão: “Como devemos usar as Escrituras quando nos ocupamos com a filosofia?”

 Tal questão, evidentemente, somente é levantada num ambiente cristão – ora, num lugar onde não se leva Deus e Sua Palavra em consideração, tal questão certamente não encontra espaço.

Entretanto, mesmo que essa indagação ocorra apenas em círculos cristãos, não está plenamente claro se a intenção com a qual é proposta justifica-se em todos os casos. É preciso cautela com a palavra “uso” aqui, pois uma concepção equivocada pode – ainda que não necessariamente – se configurar como a base desse conceito. Ora, este é o caso quando alguém se afasta de si mesmo e indaga: “Como posso me ater às Escrituras?”. Todavia, conforme dito anteriormente, tal concepção, que evidentemente deve ser considerada um equívoco, não se configura como uma necessidade, de modo que tal questão pode ser presentemente ignorada.

Mais importante do que isso é que, em primeiro lugar, não nos ocupemos filosoficamente com as Escrituras: a elas devemos nos dirigir primeiramente não como seres humanos filósofos, mas sim como seres humanos sem títulos, sem pretensões.

As Sagradas Escrituras se direcionam primariamente à vida prática. Ao ensino e admoestação, mas simultaneamente ao conforto, a fim de que tenhamos esperança; a fim de que, como cristãos, tenhamos uma visão voltada para cima; com o intuito de que há, na vida, uma porta por meio da qual Deus Se comunica à raça humana – uma porta através da qual, nós, mediante nossa resposta à Palavra Divina, somos capazes de nos direcionar a Deus.

Em segundo lugar: essa Palavra nos faz perceber a totalidade do mundo, tal como criada por Deus. Ora, ela nos diz que o universo foi criado por Deus, de maneira que jamais devemos tomar algo deste mundo como sendo divino. Também esse ensino se destina primeiramente à prática: a proibição da idolatria tanto das coisas quanto de seres humanos! Ademais, Deus sujeita o mundo à Sua lei: a obediência amorosa é aquilo que, em primeiro lugar, nos é exigido. 

Em tudo isso não há inicialmente nenhuma indagação com respeito às ciências especializadas ou com a filosofia. A prática é concorde com isto: há milhões de pessoas que reconhecem as Escrituras como sendo a Palavra de Deus, as quais aprenderam a confiar em Deus na Sua Palavra; e, mais de 95% dentre esses milhões de indivíduos não participam do âmbito das ciências especializadas e da filosofia.

Todavia, as Escrituras Sagradas têm algo a ver com a filosofia. Mas como, precisamente, se dá essa relação?

O USO DAS ESCRITURAS E DA FILOSOFIA VISTOS A PARTIR DA HISTÓRIA DO PENSAMENTO

 A fim de respondermos a tal questão, devemos, antes de tudo, analisar a história.

O pensamento-síntese

O passado nos ensina que, nos círculos cristãos, essa relação se estabeleceu na maior parte das vezes de forma equivocada. Alguns partiram de uma concepção originariamente pagã e, então, se voltaram para as Escrituras. O resultado foi uma combinação de conceitos pagãos com temas bíblicos. Em outras palavras: uma síntese.

Agora, nos livros didáticos relevantes, o costume é discutir bastante brevemente a história da filosofia de síntese. É compreensível, pois aquele que não está interessado na relação entre as Escrituras e a filosofia não considerará o pensamento de síntese e seus resultados suficientemente interessantes. No entanto, esse ponto de vista não pode estar correto, já que a síntese coloca vários temas novos na agenda. A despeito disso, a síntese dominou o pensamento da Europa ocidental e meridional por cerca de quinze séculos. São, portanto, dois motivos que nos impedem de conceber tal questão de forma leviana.

Analisada mais detidamente, essa era aparentemente cobre três períodos. O primeiro deles é aquele do pensamento do cristianismo primitivo; o segundo, o pensamento da Idade Média; e finalmente o pensamento pré-Reforma e o humanismo “cristão”.

A primeira síntese foi a mais original: a Idade Média retrabalhou seus resultados na Escolástica, de modo bastante acadêmico, ao passo que o terceiro período tentou – contrapondo-se à Escolástica e contornando a Idade Média – reviver o pensamento do cristianismo primitivo, decepcionando-se, todavia, ao falhar nesse propósito.

Contudo, podemos não nos julgar por satisfeitos com essa distinção de períodos somente, pois já no primeiro período tornou-se manifesto que a síntese ocorrera de diversas maneiras. É possível, pois, distinguir nesse ponto principalmente três tipos de relações.

O mais antigo deles é o método do embutimento e exegese. Os adeptos desse método buscavam, nas Sagradas Escrituras, algum elemento filosófico, e encontravam nelas, como acreditavam, uma ideia que algum filósofo já tivera antes. Isso acontecia involuntariamente – não devemos pensar que os cristãos primitivos se colocavam esta questão: “Como faço para combinar meu sistema com as Sagradas Escrituras?”. Para isso, contribui ainda o fato de que o Antigo Testamento era lido na sua tradução para o grego [A Septuaginta] e que o Novo Testamento fora escrito também nessa língua. Um único exemplo deve ser suficiente. Alguns já se tornaram adeptos de uma filosofia na qual o termo “Logos” ocupa um lugar de destaque. Quando eles começaram a ler João 1, encontraram o termo “Logos”, mas num sentido totalmente diferente. Todavia, isso não foi percebido, de modo que facilmente se transferiu tal conceito – que trouxeram de sua educação e estudo – para as Escrituras. Evidentemente isso não é exegese, mas um “embutimento”: isto é, a transferência de um conceito para dentro das Escrituras sem que se perceba isso. E desse modo se declara que o escritor defendia essa ideia filosófica prévia, que passa, então, a ser fortalecida, visto que não se baseia na autoridade humana, mas na autoridade da Palavra de Deus.  

Esse método evidentemente terminou num cul-de-sac [beco sem saída], pois automaticamente não se conteve com apenas uma única concepção que se pensava ser confirmada pela Escritura: na verdade, o número de filosofias “cristãs” que se originaram dessa forma logo se tornou tão vasto quanto o número de concepções pagãs que existiam anteriormente. Dentre elas houve algumas rejeitadas pela igreja, e outras que não foram condenadas por ela.

Nesse ínterim, alguns cristãos perceberam que aquilo que traziam consigo [pela educação e formação] era algo inteiramente diferente daquilo que as Sagradas Escrituras apresentavam. Portanto, tais indivíduos passaram a demonstrar aversão pelo método exegético de “embutimento”. Todavia, mesmo eles afirmavam: há somente uma única filosofia, a greco-helenística, e nisso insistiram. Não obstante, buscava-se também crer naquilo que as Escrituras apresentavam, e assim se percebeu que existiam alguns conflitos em certos pontos. Consequentemente, julgou-se que a verdade das Escrituras e da filosofia se encontravam num relacionamento paradoxal. Esse era o ponto de vista de um pensador como Tertuliano.

Havia também uma terceira concepção: a natureza e graça. É deveras antiga, pois já a encontramos expressa no sínodo de Orange (529 d.C.). Ora, de acordo com essa concepção, é preciso distinguir entre “natural” e “sobrenatural”; Adão, em seu estado de retidão, recebeu o sobrenatural, que lhe foi retirado através de sua queda no pecado; mediante a graça, o sobrenatural é recuperado no cristão. Nesse sentido, a filosofia que se tomara dos pensadores pagãos pertencia ao domínio do natural. Mas tal filosofia também refletiu acerca de Deus, possuindo, portanto, sua própria representação da Divindade, que destoava da representação da igreja, a qual estava parcialmente ligada às Sagradas Escrituras e parcialmente ao método exegético de embutimento. Mediante isso, deparou-se com uma dualidade também neste ponto, assim como na relação paradoxal. Ainda assim, não havia um total acordo com esta relação: o relacionamento mútuo entre a visão pagã e a visão da igreja não se configurava como paradoxal – antes, chamavam tais visões de “preliminar” e “cumprimento”, respectivamente.

A filosofia de síntese apresenta, pois, esses três modos de associação. Todos eles permaneceram como tais mesmo posteriormente; é possível reconhecê-los no conflito tri-modal durante a Idade Média, o qual efervesceu, de uma maneira escolástica, entre pensadores como William de Champeaux, Pedro Damião e Lanfranco de Cantuária. O recrutamento do poder desses três modos alterou gradualmente o curso da história, pois por meio disto o tema natureza-graça, que já tinha relativamente alguns adeptos durante a era dos Pais da Igreja, assumiu a proeminência quando do florescimento do Escolasticismo. Todavia, os dois outros temas permanecerão vivos ainda. E ainda hoje os humanistas bíblicos seguem o método exegético do embutimento; os seguidores de Kierkegaard vivem do paradoxo, e não apenas os pensadores católico-romanos mas também os protestantes seguem o tema da natureza e graça.  

Aquele que percebe isso compreende quão extenuante será nosso esforço a fim de alcançarmos uma filosofia escriturística livre de todas as sínteses.

Filosofia escriturística

Mas o que queremos dizer com o termo filosofia escriturística?

Em primeiro lugar, queremos dizer que não vamos às Escrituras com nossas próprias concepções a fim de que estas sejam sancionadas por aquela, mas sim permitir que as Escrituras tenham a palavra em nossas vidas, desde a tenra idade.

Ora, ninguém nasce filósofo. Todos vêm ao mundo como crianças, todos iniciam sua vida de conhecimento com o conhecimento não-científico da experiência diária. O infante aprende algo de sua mãe, ele é um pequeno ser humano. O adulto não pode exigir muito da alma da criança. Entretanto, por outro lado, deve-se rejeitar a representação das crianças como sendo efetivamente pequenos animais que nada podem fazer a não ser perceber com seus sentidos e notar o calor e alimento provenientes de sua mãe. Ora, no pequenino – justamente por ser um ser humano – há também amor e confiança. Esse é o modo pelo qual as Sagradas Escrituras veem o pequeno ser humano. Davi sabia disso – pois ele confiava em Deus enquanto ainda era um infante (Sl 22:10). Evidentemente não se trata de uma fé que possa ser expressa em palavras, mas há uma dedicação a Deus por meio da confiança da fé dos pais; há por vezes uma ligação direta na confiança em Deus, um fortalecimento em Seu amor.

E então crescemos e passamos a conhecer nossos pais, nossos irmãos e irmãs, nosso ambiente: primeiramente o berço, em seguida, o quarto, logo, o jardim, a rua, os amigos, a escola.

Tudo isso se configura como conhecimento não-científico. Eis, portanto, a beleza disto: esse conhecimento não é uma fase passageira. Muito de nossa infância passa, todavia, o conhecimento não-científico permanece: conhecemos um ao outro como homem e mulher com o conhecimento não-científico; realizamos a maior parte de nossos afazeres com esse mesmo conhecimento.

Gradualmente uma visão se desenvolve, uma unidade da contemplação, que não é, de modo algum, uma ciência nem, portanto, uma filosofia, mas sim uma biocosmovisão: a qual as pessoas chamam ora de “humanismo”, ora “catolicismo”, “luteranismo” e “calvinismo”.


Autor: Dirk H.Th Vollenhoven
Tradução: Fabrício Tavares
Divulgação: Reformados 21