26 de abril de 2016

É possível Deus falar hoje fora das Escrituras? (1/4)


“O Senhor me falou!”

“Deus fala ainda hoje aos seus filhos fora das Escrituras Sagradas!”

Quais as implicações teológicas imediatas destas afirmações?

A NATUREZA NÃO CONFESSIONAL DA REVELAÇÃO MODERNA

1. Tal afirmação (“O Senhor me falou”) é caracteristicamente proveniente da tradição teológica não reformada. A Confissão de Fé de Westminster considera que Deus não fala mais aos homens por meio profético-revelacional, mas sim, iluminatório e escriturístico. O seu texto afirma essa teologia nas seguintes palavras:

Todo conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela. À Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens; reconhecemos entretanto, ser necessária a íntima iluminação do Espírito de Deus para a salvadora compreensão das coisas reveladas na Palavra, e que há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comuns às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras gerais da Palavra, que sempre devem ser observadas. (Confissão de Fé de Westminster, cap 1, seção 6)

Nenhum dos reformadores deu ênfase a este tipo de comunicação extra Escritura. Para os reformadores, toda e qualquer inovação diferente da comunicação de Deus através das Escrituras nada mais era do que um sinal de heresia e artimanha satânica. Os fenômenos de “ouvir a voz de Deus” e “falar com Jesus”, depois da era apostólica, foram tratados como manifestações bizarras que sempre culminavam em movimentos bizarros e em doutrinas heréticas. O mesmo acontece nos dias atuais. Todas as pessoas que começam “ouvindo a voz de Deus” terminam dando origem à heresias estranhas e absurdas, levando em conta ainda que todas elas desenvolvem uma anomalia ministerial que acabam por dividir igrejas e tornam-se em movimentos messiânicos, onde são os “enviados especiais de Deus” ou “os porta-vozes” de Deus. Não demora muito e logo estarão profetizando o fim do mundo. A história da igreja tem mostrado esse caminho tomado pelos Adventistas do Sétimo Dia, pelos Mórmons e por vários movimentos “evangélicos” que começaram ouvindo “a voz de Deus”. O caso mais recente deste fenômeno está acontecendo nos Estados Unidos com a sociedade Vineyard, de John Wimber. Este movimento tem profetas e revelações “fresquinhas” todos os dias. Não é de admirar que um dos membros desta sociedade, chamado Jack Deere, um dos que ouvem a voz de Deus, tem sido condenado pela comunidade teológica americana por chamar de satânica a doutrina da suficiência das Escrituras.

Louis Berkhof, em sua Teologia Sistemática, representa bem o pensamento reformado quando diz:

Todo conhecimento obtido por quem recebe a graça divina é produzido nele por meio da Palavra e da Palavra derivado. Esta posição deve ser sustentada em oposição a todas as classes de místicos, que alegam revelações especiais e um conhecimento espiritual não mediado pela Palavra, e que, com isso, nos levam a um oceano de ilimitado subjetivismo.1

2. Tal afirmação é contrária à orientação e recomendação doutrinária da Igreja Presbiteriana do Brasil

No texto das Cartas Pastorais, pág 22, Edição Set. 1995, a comissão permanente de doutrina da IPB redigiu o seguinte:

Todo ensino sobre as línguas e profecias que entende a prática moderna como uma experiência revelatória, isto é, uma experiência na qual nova revelação é recebida, é contrário ao caráter final da revelação bíblica e à autoridade das Escrituras como única regra de fé e prática.

A Igreja Presbiteriana do Brasil entende, com este texto, que uma ideia moderna de revelação consiste numa ameaça à autoridade das Escrituras e ao seu caráter final da revelação.

O que a comissão de doutrina entende perfeitamente é aquilo que todo crente deveria entender: que a revelação de Deus sempre implica em canonicidade, e, portanto, sempre prejudicará o caráter de revelação última das Escrituras em qualquer sentido. Deus dirige Seu povo não mais por palavras reveladas, mas pela Palavra iluminada. A palavra revelada sempre será canônica, e sempre reivindicará inspiração, infalibilidade e autoridade. O primeiro dano que as Escrituras sofrem com a presença de uma palavra revelada é a perda de sua suficiência. Ora, se as Escrituras fossem suficientes, por que deveria Deus continuar falando por revelação nos dias de hoje? Se Deus ainda fala hoje, isso significa que somente as Escrituras não bastam para preparar o crente para a maturidade nem para toda boa obra, (2Tm 3:16). Neste erro caíram os Mórmons, pois compreenderam perfeitamente que a palavra revelada implica em canonicidade. Por isso eles possuem mais dois livros considerados sagrados que completam a Bíblia.

Deveríamos chegar a uma compreensão lógica que, se admitirmos a palavra revelada hoje, teremos que perder de vista a ideia de um cânon, e, consequentemente, a ideia de Escritura Sagrada, pois o cânon nunca será apenas o que está registrado, mas também o que está sendo revelado. Foi assim na época em que o Novo Testamento ainda não havia sido escrito. O povo tinha um cânon que correspondia às Escrituras do Velho Testamento juntamente com a revelação fresquinha dos apóstolos e dos profetas do Novo Testamento que ainda não havia sido escrita. Cremos que esta época já passou, pois os apóstolos e profetas que falaram inspiradamente já não existem mais. Se não entendermos dessa maneira, cairemos em outro problema ainda maior: considerar que, ora Deus fala como Deus (nas Escrituras), e ora Ele fala como homem (revelação moderna). Ou seja, Deus falou inspiradamente quando tratava-se das Escrituras Sagradas, mas agora Ele fala aos seus filhos como qualquer outro homem, sem inspiração, de maneira errante e falível. Não haveria ideia mais absurda a que pudéssemos chegar!

3. Não há registro desde os pais pós-apostólicos, até o início do século XX, de que Deus tenha conduzido sua igreja por “revelação”

Além dos ensinos apostólicos, nada mais foi escrito, e nada de novo foi revelado. Da mesma forma, até os dias modernos, nada há que tenha superado as Escrituras ou se colocado ao seu lado. As revelações ou visões modernas são estruturadas em cima de elementos bíblicos já revelados, e possuem um caráter extremamente particular e subjetivo. As revelações objetivas e públicas são extremamente perigosas para o profeta moderno porque o expõem à avaliação e ao fracasso. A revelação dos tempos bíblicos sempre era pública e objetiva, pois o profeta de Deus era inspirado e não estava sujeito a erros como os profetas modernos, os quais não são inspirados nem inerrantes. O profeta não inspirado nunca passava no teste da falsa profecia, (Dt 18:20-22).

Depois da era apostólica, até mesmo os que ousaram dizer O Senhor me falou, ou foram taxados de falsos profetas, ou caíram em heresias, ou não foram levados a sério pela igreja cristã daquela época.

Os reformadores e os grandes avivalistas do passado nunca conduziram a igreja por meio de revelações ou profetismo, no entanto, conduziram multidões ao conhecimento de Cristo, coisa que dificilmente se consegue hoje, mesmo com tantas “revelações” e “operações do Espírito”. Se a revelação profética fosse algo tão vital para a igreja hoje, por que então deixou Deus Sua igreja pós-apostólica até o início do século vinte sem a prática profética revelacional, quando muitos afirmam ter sido restaurada pelos primeiros pentecostais? Se dissermos que foi porque os crentes do passado não buscaram revelações, cairemos em dois sérios erros:

1) O erro de dizer que a obra do Espírito não é soberana, e que o Espírito só faz aquilo que o homem O deixa fazer. Veja o contrário disso em 1 Co 12:11;

2) O erro de dizer que o século XX foi outro Pentecostes. Desde a era pós-apostólica muitas pessoas e grupos enfatizaram a busca de revelações do Espírito, mas nunca conseguiram reacender a prática “revelacional” com expressividade como o movimento profético do início do século XX o fez. Por que isso? Acaso Deus mudou a maneira de falar com a Igreja e de dirigi-la? Por que somente a era apostólica e o século vinte provaram as “revelações do Espírito”? Por que a Igreja da idade moderna, responsável por tantos movimentos missionários e tantos reavivamentos nunca deu ênfase à prática revelacional? Era ela menos espiritual? Como então produziu tanto na evangelização?

Se o fenômeno revelacional moderno é o mesmo da era apostólica ou sua continuidade, por que então nada de novo foi revelado e escrito desde 1901 (início do movimento pentecostal) até hoje? Com esse questionamento, parece que somos obrigados a chegar à conclusão que há dois tipos de prática revelacional: uma é inspirada, a dos escritores bíblicos, a outra é não inspirada, a dos profetas modernos. Se isso é verdadeiro, Deus estaria falando de maneira diferente da que Ele sempre falou (inspiradamente). Porém, qual a prova escriturística que temos para fundamentar a ideia de que Deus fala revelacionalmente mas sem inspiração? Nenhuma! Isto é prova de que esse ensino é humano, e parte de experiências subjetivas daqueles não têm nem mesmo condições de interpretar sua própria imaginação.

4. Se a revelação moderna é a maneira de Deus falar com sua Igreja hoje, por que então Deus só fala com denominações pentecostais, simpatizantes ou somente com aqueles que já são ambientados com as ideias de revelação?

Uma constatação intrigante é a ausência, em grande parte, nas denominações históricas no mundo inteiro, de algo que, segundo os pentecostais, seria tão vital para a vida da igreja de Cristo, como é a comunicação revelacional de Deus. Dizer que as denominações históricas não recebem revelação porque não acreditam ou não buscam o fenômeno é deveras inconsistente. Esse é o argumento de Caio Fábio2 para indicar a razão pela qual os reformadores não provaram destas experiências.

Em Pentecostes, os discípulos tinham a promessa, mas não compreendiam o que aconteceria no dia do derramamento do Espírito e nem buscaram revelações (At 2). Cornélio não cria no dom de línguas e o recebeu sem buscar, (At 10). Os efésios nada sabiam sobre o Espírito Santo. Depois de ouvirem o Evangelho, profetizaram e falaram em línguas, (At 19). Deus revelou-se a Paulo quando este, além de não ter buscado revelação, nem mesmo cria no Evangelho (At 9). Tanto Jesus quanto seus apóstolos fizeram milagres na frente de seus inimigos incrédulos. Portanto, não há base bíblica para tal afirmação que a revelação só vem aos que são crédulos. Não foi assim o modelo bíblico.

Um outro problema com esse argumento é a questão da natureza da revelação. Ora, revelação é, por natureza, voluntária e soberana, e não precisa que alguém esteja buscando-a ou que procure algum profeta em reuniões para-eclesiáticas (reuniões fora da igreja) para receber revelação. Se Deus quis revelar-Se, Ele o fez quando quis, a quem e como quis revelar-Se. Sempre foi assim no Antigo e Novo Testamentos. Deus é soberano em seus atos e propósitos. Sempre foi Deus que decidiu revelar-Se. Ele não Se revela por imposição, condição ou exigência dos homens. Não precisa que o homem acredite ou não nisso para Deus revelar-Se. Doutra maneira, os pecadores incrédulos nunca poderiam ser salvos, pois eles não podem crer, mesmo assim é Deus quem lhes revela a verdade salvadora (Mt 13:11-12; Lc 10:21). Portanto, Deus não escolhe revelar-Se apenas aos que creem, pois Ele revelou-se muitas vezes aos que não criam em revelação. Esse é o propósito da revelação: trazer os incrédulos à luz (Lc 2:32). Assim, é totalmente antibíblico considerar a veracidade do movimento revelacional moderno se ele, além de divergir do modelo bíblico, somente ocorre entre aqueles que, de alguma maneira, já têm pressupostos revelacionais ou estão envolvidos com o movimento.

As revelações parecem algo que é sugerido por praticantes ou simpatizantes do fenômeno. Dificilmente se fala que Deus revelou-Se entre os crentes tradicionais ou entre aqueles que não creem no fenômeno. Deus só tem Se revelado aos pentecostais/carismáticos? Ora, se Deus tivesse tratando com o seu povo hoje por revelação, Ele o faria em qualquer setor da Igreja, pois, ao estilo do Novo Testamento, Deus revelou-se aos incrédulos, e isto implicaria em confirmação da sua verdade pregada ao mundo. Não são os que já creem em revelação que deveriam receber revelações, mas se o fenômeno é verdadeiramente moderno e necessário à vida da igreja, ele deveria estar presente entre os que não acreditam na possibilidade de Deus falar revelacionalmente nos dias de hoje, pois só assim o fenômeno seria atestado como verdadeiro. Dessa forma, se Deus estivesse Se revelando hoje, essa revelação não deveria ser unicamente para pentecostais. Acaso somente eles são a Igreja?

Outra ênfase errada dada à revelação nos nossos dias é a sua prática em movimentos separados da igreja como um todo. Os profetas modernos parecem precisar de um ambiente só para eles, para que possam ficar à vontade com seu profetismo. Assim, muitas experiências proféticas modernas só acontecem em reuniões domiciliares ou para eclesiásticas. Não há nenhum indício de tal prática no Novo Testamento. A profecia sempre foi exclusividade da igreja e não de grupinhos de crentes que se isolam do resto da igreja (1Co 14:19,23,28,34). Exceto os indivíduos que faziam parte do processo históricoredentivo (como em Atos dos Apóstolos), Deus só falou revelacionalmente à Igreja.  

Uma outra característica da profecia moderna é que ela é subjetiva e particular. É evidente que todo movimento profético moderno começa em uma residência ou pequeno grupo separado da igreja. Foi assim também o início do movimento pentecostal em 1901. O caráter particular da revelação moderna está no fato de que ela quase sempre acontece em reuniões exclusivas e particulares, quando grupos se excluem da totalidade da igreja para reuniões de oração e revelação. É pejorativo constatar que esse tipo de ambiente é propício a esconder o profeta em suas falsidades, pois, diante de um grupo maior ele está mais exposto a ser avaliado. Com um grupo pequeno, só comparecem lá aqueles que já têm seus pressupostos e suas crenças na revelação. Mesmo que o profeta erre em suas revelações, ele nunca passará vexame, pois o seu grupo que já é bem seleto lhe apoiará, caso haja falsa profecia.

A característica subjetiva da revelação é que nos dias modernos os profetas nunca se levantam com grandes revelações como os profetas do passado. Os que tentaram um tão grande empreendimento revelacional caíram em descrédito por falsa profecia. O que se vê normalmente hoje é a típica profecia difícil de se averiguar ou avaliar. Geralmente os profetas modernos trazem revelações em linguagem dúbia sobre as coisas mais comuns e mais possíveis de acontecer na vida de qualquer pecador. Mas o maior de todos os problemas é a interpretação dada por quem ouve. Os profetas modernos não profetizam datas, lugares, indivíduos importantes da história, nações, guerras, catástrofes, mortes ou grandes feitos de Deus na história. Está provado que todos os aventureiros que fizeram isso falharam vergonhosamente. Mas os profetas da Bíblia sempre fizeram isso. Suas profecias eram objetivas. A revelação moderna parece não ter sido muito semelhante ao modelo bíblico, pois depois da era apostólica, a revelação só tem tratado de casamentos, negócios, doenças, pecado, etc. Seu uso deixou de ser da igreja, e passou a ser de consumidores particulares.




NOTAS:

1. Louis Berkhof, Teologia Sistemática, p. 614. 
2. Caio Fábio, Espírito Santo, o Deus que vive em nós, p. 91. 



Autor: Moisés Bezerril