19 de abril de 2016

Um Futuro para o Israel Judaico? (1/2)



Haverá ainda um futuro para o Israel judaico? Essa não é primariamente uma pergunta sobre a sorte política do moderno Estado de Israel, mas sobre se o Israel judaico ainda tem um lugar especial na história divina da salvação. Outrora o Israel judaico foi o povo com quem Deus estabeleceu a sua aliança e a quem ele fez promessas. Ainda vigora essa aliança original? Pode ainda o Israel judaico reivindicar legitimamente as promessas?

Se, como os capítulos anteriores mostraram, Jesus é aquele por meio de quem as promessas de Deus a Israel se cumprem, pode ainda haver cumpri­mento fora de Jesus ou além dele? Se, como o prometido descendente de Abraão e de Davi, Jesus representa a totalidade de Israel em sua pessoa e em sua missão, pode um grupo étnico e religioso, ou étnico-religioso existente fora dele ter um lugar especial na história divina da redenção? Pode o Israel judaico ainda alegar que é o povo eleito de Deus, mesmo depois de recusar as reivindicações de Jesus, que manifesta essa eleição? Ou devemos concluir que a sua incredulidade cancela efetivamente a legitimidade da sua reivindicação?

Uma variedade de respostas

Os Evangelhos e Paulo

Paulo e os autores dos Evangelhos e de Atos dão as mesmas respostas? Os Evangelhos falam em juízo sobre aqueles que rejeitam as reivindicações de Jesus. Por exemplo, depois de demonstrar que as promessas do Antigo Testa­mento feitas a Israel se cumprem em Jesus, Mateus conclui que o reino de Deus será tomado dos que rejeitam a autoridade do Filho de Deus e deixam de produzir o fruto do reino (Mt 21.43). Similarmente, o Evangelho de João rejeita vigorosamente qualquer recurso de apelação encaminhado a Abraão e a Moisés por aqueles membros do Israel judaico que se recusam a reconhecer as prerro­gativas de Jesus. Em vez disso, o quarto Evangelho insiste em que a fé em Jesus é o único meio de entender Moisés e de apropriar-nos das promessas feitas a Abraão e à sua semente (Jo 5.46; 8.34-59). Portanto, os discípulos de Jesus recebem as prometidas bênçãos e são vistos como o Israel verdadeiro ou renova­do, apesar de isso ser dito só implicitamente (Mt 13.16,17; Jo 3.16; 15.1-11). Se esse é o ensino dos Evangelhos, pode haver lugar na aliança de Deus para outro Israel que ainda acaso tenha o direito de reclamar a herança prome­tida? Os Evangelhos e Atos ensinam que sobreveio juízo ao Israel descrente e que esse juízo cumpre a palavra profética de Isaías:

Vai e dize a este povo: Ouvi, ouvi e não entendais; vede, vede, mas não percebais. Torna insensível o coração deste povo, endurece-lhe os ouvidos e fecha-lhe os olhos, para que não venha ele a ver com os olhos, a ouvir com os ouvidos e a entender com o coração, e se converta, e seja salvo. (Is 6.9)

Seria esse juízo profético sobre a cegueira e a incapacidade de arrepender­-se que recaiu sobre Israel um sinal do fim do Israel judaico como povo de Deus? 

Atualmente muitos intérpretes insistem que, de fato, é esse o caso. Eles acreditam que o bom entendimento dos Evangelhos e de Atos implica o fim da significação do Israel judaico na história da redenção, e que sobre esse corte somente o apóstolo Paulo ensina uma perspectiva significativamente diferente. Mas será? Os Evangelhos e Atos ensinam a exclusão definitiva do Israel judaico da aliança? 

É importante observar que os Evangelhos e Atos nunca fazem explicitamente um julgamento definitivo sobre o futuro do Israel judaico descrente. Em vez disso, eles focalizam a presente manifestação de incredulidade, o juízo que necessariamente recai sobre essa incredulidade, e a consequente perda presente das bênçãos da aliança. Por mais duros que pareçam esses juízos, o palavreado e a sua dureza são tomados por empréstimo dos profetas do Antigo Testamento, principalmente Isaías. Os profetas da aliança sempre falaram fortemente àqueles de Israel que não creram e não obedeceram porque, desde o seu princípio, a aliança continha a promessa de bênção e a ameaça de maldição. O fracasso em não crer e em não obedecer trouxe a Israel juízo, não bênção, morte, não vida. A mensagem do Novo Testamento é completa e penetrantemente a mesma. Uma vez que as promessas foram cumpridas em Jesus, deixar de crer e de obedecer traz juízo e a perda das bênçãos da aliança.

Mas esses juízos são finais? Serão suspensos? Algum dia surgirá vida onde só reinavam morte e juízo? Sobre essa possibilidade os Evangelhos ficam mor­mente silenciosos.Eles não se dirigem explicitamente ao futuro do  Israel descrente, como faz Paulo. Contudo, não se deve deixar de lado o fato de que o apóstolo Paulo também descreve a presente posição do Israel judaico des­crente como estando sob a realidade do juízo de Deus (Rm 11). Embora Paulo difira dos Evangelhos e de Atos em dirigir-se explicitamente a uma questão à qual eles não se dirigem, ele é notavelmente similar a eles em anunciar juízo presente com palavras emprestadas pela aliança do Antigo Testamento. Os intérpretes não devem isolar os Evangelhos e Atos, separando-os do substrato da aliança do Antigo Testamento, e depois extrapolar respostas à questão do futuro do Israel descrente, uma questão que está além dos horizontes conscientes dos autores. Se a sua linguagem sobre juízo presume perspectivas da aliança do Antigo Testamento, não há nada nos Evangelhos e em Atos que, quer bíblica quer logicamente, acarrete uma rejeição do Israel judaico.

A atitude da Igreja passada e presente

Já descrevemos no capítulo 1 como a atitude da Igreja para com o futuro do Israel judaico tem variado largamente  no curso dos séculos. A variedade de pronunciamentos do Novo Testamento tem sido adotada para dar suporte a diferentes opiniões. Já no segundo século da existência da Igreja a ideia domi­nante veio ser que a significação do Israel judaico como povo perdeu a razão de ser. Embora admitindo que judeus individuais podem participar das promes­sas pela conversão ao Cristianismo, esse conceito ensinava que o povo judeu, como tal, deixou de ter um papel especial no plano divino de salvação. Deixou de ser o povo eleito. Em lugar disso, a Igreja tinha substituído totalmente Israel. Essa perspectiva substitutivista tornou-se dominante na Igreja, mas não era o único ponto de vista. Não somente os conceitos pre-milenistas concernentes ao Israel judaico estiveram sempre presentes na Igreja, muito embora frequentemente sofrendo oposição, mas também alguns daqueles cujas ideias eram mormente substitutivistas concernentes à relação da Igreja com o Israel judaico reconheci­am um mistério que a Igreja deve respeitar. O ensino de Paulo em Romanos 11 acerca do Israel que era inimigo do evangelho, mas que continuava sendo o povo eleito de Deus, formava uma barreira para qualquer simples dedução lógica de que o Israel judaico tinha sido rejeitado completamente por Deus.

Esse ensino paulino sobre a permanente eleição do Israel judaico veio a ser, em nosso século, o fundamento para todo o pensamento teológico acerca da relação entre Jesus e Israel, ou entre Igreja e Israel. Os trágicos eventos do "holocausto" e do restabelecimento do Estado de Israel levaram a consciência da Igreja a constranger-se ao máximo quanto a essa questão. Como descrevi brevemente no capítulo 1, muitas Igrejas têm feito declarações afirmando essa eleição permanente do Israel judaico. Contudo, ainda não há consenso concernente às consequências que redundariam dessa eleição permanente. Há uma aliança ou duas? A existência judaica como povo eleito de Deus na história é confinada em si mesma, sem nenhuma relação necessária ou essencial com Jesus Cristo? Tem a Igreja alguma obrigação de evangelizar os judeus? Sobre essas questões há ampla divergência entre as Igrejas e seus teólogos.

Assim, qualquer reflexão bem informada sobre a questão de Jesus e Israel deve examinar esse mistério paulino de um povo que rejeita o evangelho mas continua sendo chamado povo eleito de Deus. Que é que Paulo ensina em Roma­nos 9 - 11? Como esses capítulos são os únicos do Novo Testamento que consideram explicitamente o futuro do Israel judaico, toda tentativa de falar acerca desse futuro forçosamente deve examinar o argumento desses capítulos. Em Romanos 9 - 11 o apóstolo desenvolve uma resposta teologicamente complexa, que vamos tentar expor salientando somente seus interesses centrais.

Entendendo a angústia de Paulo

Pode-se confiar em Deus?

Por que Paulo deveria preocupar-se com o destino do Israel judaico? Visto que a discussão sobre Romanos 1 - 8 apresenta o fato de que todos pecaram (tanto os judeus como os gentios), que a justificação é pela fé somente, e que a salvação é recebida unicamente em Cristo e mediante o Espírito, por que Paulo deveria, de repente, ficar tão profundamente preocupado com a posição e o futuro do Israel judaico descrente? Séculos de interpretação protestante,  que fez da justificação individual o ensino central de Paulo, não tiveram uma res­posta fácil para a profunda preocupação de Paulo, pois, presumindo-se que Romanos 9 - 11 focaliza a justificação individual, a eleição e o juízo de indivíduos separados, então o apóstolo teria uma resposta obviamente lógica para a pergunta a ele feita. Ele teria respondido: Se uma pessoa não crê em Jesus Cristo, como acontecia com a maioria dos seus companheiros judeus, segue­-se que tal pessoa não é eleita. Apesar de Romanos 9 - 11 ter sido interpretado dessa maneira, essa ideia presume uma resposta que Paulo não aceitou e que não poderia aceitar, porque a sua preocupação surgiu precisamente da eleição de Israel. Como, porém, seria possível manter a eleição do Israel judaico em face de uma incredulidade tão generalizada? Esse é o dilema do apóstolo, e, como Moisés no deserto (Êx 32.32), Paulo expressou-se mostrando o desejo de sofrer o juízo por amor dos seus compatriotas, se isso lhes propiciasse a salvação (Rm 9.3). Seu oferecimento não foi motivado meramente pela identidade étnica ou racial, pela solidariedade com seu povo, mas, como aconteceu com Moisés, Paulo foi motivado pela preocupação com a honra do Deus que tinha escolhido Israel. Como a honra de Deus, que é sempre fiel à sua promessa, seria mantida em face de um Israel descrente?

Hoje muitos intérpretes concordam que os horizontes do argumento de Paulo em Romanos 9 - 11 estendem-se tão amplamente como a história da redenção divina no mundo. Paulo está interessado no papel do Israel judaico nessa história. Sua questão básica é se o papel do Israel judaico chega ao fim numa era em que Deus está levando a sua salvação às nações do mundo. Agora que os gentios estão se arrebanhando com o povo de Deus, a definição desse povo terá sido tão alterada que o Israel judaico não mais se qualifica? No início parecia a Paulo que era assim, mas seria possível conceber que Deus simples­mente abandonasse o seu povo veterotestamentário? São essas as perguntas que Paulo procura responder em Romanos 9 - 11, e elas decorrem de tudo o que veio antes, nos capítulos 1 - 8.

Uma importante conexão da discussão anterior de Paulo acha-se no contexto imediato. Romanos 8 funciona como um clímax que celebra a proclamação contida nos capítulos 1 -7. No capítulo 8, Paulo celebra tanto a liberdade presente concedida pelo Espírito em Cristo como a esperada da liberdade da criação inteira na ressurreição, ambas as liberdades firmadas no amor eletivo de Deus e por ele asseguradas. O apóstolo tem absoluta confiança em que nada, em toda a criação, pode separar os crentes desse amor eletivo de Deus e da salvação por ele dada em Cristo Jesus. Assim, Romanos termina com uma nota de absoluta certeza fundada nas ações de Deus em Cristo.

Por que será, então, que houve tão abrupta mudança de disposição da celebrada certeza para uma tristeza e angústia pessoal no início de Romanos 9? A razão é óbvia. Quando Paulo move o seu olhar de Cristo para a realidade da incredulidade dos judeus, pergunta-se com que direito se mostrava tão confiante e, em face de tão maciça resistência ao evangelho, ele se pergunta se afinal a eleição é uma garantia tão confiável assim, afinal de contas o Israel judaico era o objeto original da eleição, o receptáculo de numerosas bênçãos e privilégios, mus, agora, na presença de Jesus e do evangelho, a maioria não cria. Será a eleição algo tão seguro? Se Israel pode aparentemente cair, o que acontecerá com a confiança cristã no amor eletivo de Deus em Cristo? Sem uma resposta satisfatória para a incredulidade do Israel judaico, a certeza expressa em Romanos 8 fica em perigo. Em consequência, Paulo necessariamente levanta a questão da posição e do destino do Israel judaico à luz da sua eleição anterior. A validade do seu evangelho depende da resposta.

Tendo em vista a conclusão de Paulo

Quando se analisam argumentos complexos, às vezes é necessário examinar as conclusões para ver se a análise contradiz as intenções do autor. A história da interpretação de Romanos 9 - 11 demonstra como é fácil explicar mal o argumento de Paulo: por vezes os intérpretes desenvolveram uma ideia da eleição que leva à conclusões que anulam a do próprio Paulo.

Embora a angustiada preocupação de Paulo provenha do Israel judaico descrente e do fato de Israel estar sob o pesado juízo de Deus, sua singular conclusão anuncia a salvação final do Israel judaico. O motivo dessa certeza é expresso em Romanos l l .28: Quanto ao evangelho, são eles inimigos por vossa causa; quanto, porém, à eleição, amados por causa dos patriarcas; porque os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis. Dessa maneira, a confiança do apóstolo concernente à salvação do Israel judaico descrente repousa precisamente no mesmo fundamento que a sua certeza concernente à salvação daqueles que estão em Cristo. Esse fundamento inabalável é que, em termos finais, nada pode frustrar os propósitos do amor eletivo de Deus. Como os profetas do Antigo Testamento, Paulo afirma que nem a infidelidade do povo de Deus pode cancelar a fidelidade de Deus, porque Deus curará a sua infidelidade (Os 14.4). Embora em meio à história possa haver razões para tristeza e angústia em face da incredulidade, no fim, a fidelidade de Deus às suas promessas se tornará manifesta, e seu povo poderá alegrar-se. Naturalmente, o argumento de Paulo não focaliza primariamente o destino dos descrentes individuais, mas, antes, o destino mútuo do Israel judaico e do mundo gentílico na história da redenção.


Entendendo a resposta de Paulo: Romanos 9 e 10

A fidelidade de Deus

O princípio da discussão de Paulo focaliza a fidelidade de Deus. Se as promessas feitas aos patriarcas e as alianças estabelecidas com eles são dadas a Israel, e se Cristo, segundo a carne, descende da raça deles, como é possível que precisamente esse privilegiado Israel, em sua maior parte, não creia em Jesus Cristo? É concebível que Deus não cumpra suas promessas?

Para o apóstolo Paulo, e para quem quer que tenha sido educado com base no Antigo Testamento, tal pensamento é completamente inconcebível. E não pensemos que a palavra de Deus haja falhado (Rm 9.6). A palavra sempre apresenta na história humana o que ela diz. Suas promessas nunca voltam para ele sem primeiro realizarem na vida do seu povo o que ele prometeu (Is 55.1). Por conseguinte, se a palavra de Deus ainda não realizou o que tinha prometi­do, deve haver alguma outra coisa que é preciso considerar. E assim o apóstolo passa a considerar os destinatários da promessa. A quem foram feitas as promessas? Foram feitas a todos os judeus indiscriminadamente, apenas com base nas conexões genéticas ou raciais com os patriarcas? A essas perguntas Paulo, juntamente com as demais partes da Escritura, diz um enfático não. A base para a reivindicação das promessas de salvação nunca foi simplesmente a descendência física dos patriarcas. A aliança de Deus com Israel não é, funda­mentalmente, uma questão de linhagem étnica.

O princípio que Paulo utiliza para dar suporte ao seu enfático não é que nem todos os que descendem de Israel pertencem a Israel, e nem todos são filhos de Abraão por serem seus descendentes (Rm 9.6, RSV). Paulo não inventa esse princípio, mas o deriva da história do Antigo Testamento (versículos 7-12). A linhagem dos verdadeiros descendentes de Abraão passa por Isaque, não por Ismael, e por Jacó, não por Esaú. O motivo dessa seleção está não nos que foram selecionados, mas na vontade e escolha de Deus. Nem a linhagem genética abraâmica em si, nem tampouco alguma ação das pessoas envolvidas pode explicar sua inclusão nas promessas da aliança de Deus. Tudo o que o verdadeiro Israel pode sempre dizer acerca da sua existência como povo de Deus é que ele foi escolhido por Deus e é objeto do seu amor e da sua misericórdia.

Essa é a lição contida na citação que Paulo faz de Malaquias: Amei Jacó, porém me aborreci de Esaú (Rm 9.13; Ml 1.3). Visto que Malaquias escreveu no fim do Antigo Testamento, ele está falando não tanto dos indivíduos que menciona, mas dos povos que esses ancestrais representam. Malaquias assevera que a disparidade que se vê na história entre Israel (Jacó) e Edom (Esaú) só pode ser explicada pelo imerecido amor de Deus por Israel. Israel tinha retomado do exílio, mas Edom permaneceu sob o juízo de Deus. Conquanto se possa explicar os juízos de Deus em termos da responsabilidade humana (cf Am 1.11-15 quanto a Edom, e 2.4-8 quanto a Judá e Israel), a restauração de Israel e sua continuada existência na história se devem exclusivamente ao imerecido amor de Deus por Israel. Israel foi restaurado do exílio não porque seu povo fosse inerentemente melhor do que o de Edom, mas unicamente porque Deus amava Israel (cf Os 11). Assim, não somente na origem de Israel, mas também em sua continuada existência, ele vive do favor especial de Deus. Como povo de Deus, Israel é uma manifestação objetiva do amor eletivo de Deus. Nisso consistem a natureza e a essência de Israel, e as promessas de Deus são feitas somente àqueles que reco­nhecem e possuem essa natureza e essa essência.

Portanto, a resposta inicial de Paulo não se baseia primariamente em números. Ele não está explicando a presente situação do Israel descrente afirmando que o verdadeiro Israel sempre foi menos que o número total dos descendentes físicos de Abraão ou de Isaque. Embora sendo isso verdade, Paulo está estabelecendo primariamente a essência do que significa ser Israel. Na essência, Israel é, e sempre foi, o povo que foi chamado à existência pelo amor de Deus e que continua a viver do seu amor. Promessa, chamamento, dom e amor são as ações de Deus que abraçam e sustentam Israel, e Israel sempre deve responder com uma fiel aceitação daquilo que Deus promete e dá. Se Israel se esquecer da sua natureza essencial, se Israel tentar estabelecer outra base para a sua existência, viverá então fora da promessa e dos dons de Deus. Apesar do fato de que a palavra e a promessa de Deus nunca podem falhar, Israel, em sua existência histórica, frequentemente esquece a sua natureza essencial e deixa de responder com fé como deveria (Rm 4.1 l).

A soberania de Deus e a desobediência de Israel

A soberania de Deus e a desobediência humana são, pois, para Paulo, duas realidades chaves que dão forma ao curso da história da salvação. A relação entre as duas realidades cria dilemas que a nossa mente finita nunca pode resolver plenamente. Não obstante, a despeito desses dilemas não resolvidos, as ênfases centrais da discussão de Paulo são suficientemente claras para resolver sua angústia pessoal e produzir, no fim, um hino de louvor.

A soberania de Deus está no centro da discussão de Paulo. Somente a misericórdia soberana de Deus pode explicar a origem e a continuada existência de Israel na história. Se Israel tivesse dependido da vontade humana e da realização humana para a sua existência, há muito teria deixado de existir. Portanto, em Romanos 9.14-29, o apóstolo celebra a vontade soberana de Deus, sua misericórdia e compaixão soberana como a única fonte de vida e de salvação para o seu povo. De fato, a soberania de Deus é salientada tão exclusivamente que parece quase arbitrária e caprichosa. Contudo, Deus não é nem caprichoso nem injusto, porque ele é o Deus que escolheu livremente ser misericordioso. Essa mensagem da graça soberana dada livre ou gratuitamente por um Deus misericordioso não é problemática para o crente, mas, ao contrário, é uma fonte de alegria e de esperança. A salvação reside nas mãos de um Deus misericordioso. Deus é tão soberano e justo  em seus juízos  como em sua misericórdia.

Conquanto seja um fato que nem Paulo nem os profetas têm qualquer dificuldade em apontar razões adequadas para tais juízos, a relação entre a soberania de Deus e a responsabilidade humana não é captada facilmente. Por conseguinte, é fácil a pessoa desviar-se por causa de perguntas difíceis, mas Paulo focaliza o extraordinário fato de que os juízos de Deus são destinados a promover os seus propósitos de graça e salvação. Os juízos de Deus ocorrem para que o [seu] nome seja anunciado por toda a terra e a fim de que também desse a conhecer as riquezas da sua glória em vasos de misericórdia (Rm 9.17,23). Admiravelmente, os juízos de Deus prestam serviço à sua soberana graça. Essa verdade se vê no caso do endurecimento do faraó, que serviu à libertação de Israel realizada por Deus, e agora no caso do endurecimento de Israel, que serve à salvação dos gentios (11.l l). Assim é que, enquanto Paulo discute a ira e o juízo, a salvação continua a ser o seu tema. Até mesmo a manifestação final da ira de Deus é protelada para atender à sua prolongada paciência, que procura garantir a salvação dos seus escolhidos dentre judeus e gentios (9.22-24). Para o apóstolo Paulo, a salvação repousa unicamente nas mãos do soberano Deus, que realiza a sua vontade com misericórdia e juízo, e, de maneira sumamente extraordinária, com juízo servindo à misericórdia. 

Como é que essas ênfases dão andamento à discussão concernente à posição e ao destino do Israel descrente? Se Deus é soberanamente misericordioso, por que Israel se tornou descrente e rejeitou a misericórdia de Deus em Cristo? A resposta de Paulo flui naturalmente do que ele tinha estabelecido concernente à natureza essencial de Israel. O Israel do seu tempo, em sua maior parte, deixou de crer porque tinha perdido o adequado entendimento do que Israel tinha sido destinado a ser. Seu pensamento era que a justiça podia ser assegurada por suas próprias obras. Para o apóstolo Paulo, a justiça inclui a salvação de tudo o que ela acarreta, desde a justificação aplicada por Deus ao indivíduo até a final renovação da criação. Israel falhou, deixando de imitar a fé vivida por Abraão, fé que reconhece e recebe essa salvação, a qual é pro­metida na aliança como um dom de Deus. Paulo faz uso da profecia da pedra, em Isaías (Rm 9.33), para esclarecer a presente situação de Israel. Justamente como o antigo Israel preferiu confiar em suas estratégias políticas e militares para garantir sua segurança em tempos de crise nacional, assim o Israel  do tempo de Paulo confiou em que as suas obras eram suficientes para garantir a salvação. Não confiou na ação soberana de Deus para sua salvação, nem colocou sua confiança na pedra fundamental sobre a qual Deus iria construir sua casa e seu reino. Em consequência, a pedra que visava à segurança e salvação tornou-se para Israel uma pedra de tropeço. O povo de Israel não estava em busca de tal pedra porque achava que não tinha necessidade dela, e assim tropeçou em Jesus, a pedra que Deus tinha lançado em Sião como o fundamento para o seu reino de justiça, porque achava que o reino poderia ser estabelecido sem ele. Mas esse Israel, que deixa de responder com fé às ações de Deus que estabelecem a salvação, vive em negação da sua própria natureza essencial como povo de Deus.

Espantosamente, a natureza essencial de Israel é vista nos crentes gentílicos, os quais antes não eram povo de Deus e que nem mesmo estavam em busca da justiça. Esses gentios creram em Cristo e não foram humilhados por tropeçar na pedra que Deus tinha destinado para segurança e salvação. Esses gentios, que não tinham nenhuma capacidade de estabelecer uma justa reivindicação das promessas de Deus com base em sua própria realização, agora vieram a ser o povo de Deus. Deus lhes tinha outorgado o mesmo amor eletivo que originariamente havia chamado Israel à existência. O exclusivismo da reivindicação feita pelo Israel judaico da salvação pela guarda da lei (Torá) tinha sido destroçado pela graça soberana de Deus. 





Autor: David E. Holwerda
Trecho extraído do livro Jesus e Israel, pág 113-122. Editora: Cultura Cristã