31 de maio de 2016

O Dízimo


A menos que vocês provem para mim pela Escritura e pela razão que eu estou enganado, eu não posso e não me retratarei. Minha consciência é cativa à Palavra de Deus. Ir contra a minha consciência não é nem correto nem seguro. Aqui permaneço eu. Não há nada mais que eu possa fazer. Que Deus me ajude. Amém.

Martinho Lutero


Introdução

O movimento Reformado representou um retorno às Escrituras Sagradas. Como consequência, o acúmulo de tradições acrescentadas à fé apostólica foi varrido da igreja. Somos filhos da Reforma e temos a obrigação de julgar nossas próprias práticas à luz da Bíblia, comparando Escritura com Escritura. A máxima igreja reformada sempre se reformando deve ser sempre lembrada e praticada. Deveríamos hesitar em abolir ensinos que não se respaldam na Revelação? Não há erro quando alguém obriga a si próprio a não comer carne, ou guardar determinados dias, ou se abster de algo, ou colocar sobre si qualquer outra obrigação sobre a qual não há mandamento bíblico (Rm 14.2-6). Porém, o erro passa a existir quando pretendemos impor a outra pessoa exigências que a Bíblia não impôs. Pretendo demonstrar, a seguir, que o dízimo, conforme tradicionalmente ensinado e praticado nas igrejas evangélicas, enquadra-se nesta definição.

Um histórico da prática do dízimo

A igreja pós-apostólica viveu a tensão entre a prática do dízimo e a afirmação paulina de que Cristo nos libertou da lei (Gl 5.1). Nos séculos 5 e 6, encontramos a prática do dízimo bem estabelecida nas áreas antigas da cristandade do ocidente. No século 8, os soberanos carolíngeos tornaram o dízimo eclesiástico parte da lei secular. Já no século 12, os monges que antes tinham sido proibidos de receber dízimos, sendo obrigados a pagá-los, obtiveram certa medida de liberdade ao obterem permissão para receber dízimos e, ao mesmo tempo, tendo isenção do pagamento deles. Controvérsias sobre dízimos sempre surgiram quando pessoas procuravam evitar o pagamento, ao passo que outras tentavam apropriar para si as rendas dos dízimos.

Os dízimos medievais eram divididos em prediais, cobrados sobre os frutos da terra; pessoais, cobrados dos salários da mão-de-obra; e mistos, cobrados da produção dos animais. Esses dízimos eram subdivididos, ainda, em grandes, derivados de trigo, feno e lenha, pagáveis ao reitor ou sacerdote responsável pela paróquia; e pequenos, dentre todos os demais dízimos prediais, mais os dízimos mistos e pessoais, pagáveis ao vigário. Na Inglaterra, especialmente por volta dos séculos 16 e 17, a questão dos dízimos foi uma fonte de conflito intenso, visto que a Igreja Estatal dependia dos dízimos para sua sobrevivência. Implicações sociais, políticas e econômicas eram consideráveis nas tentativas do arcebispo Laud de aumentar o pagamento dos dízimos, antes de 1640. Os puritanos ingleses e outros queriam a abolição dos dízimos, substituindo-os por contribuições voluntárias para sustentar os clérigos. Mas a questão dos dízimos despertou paixões ferozes e amarguras, notáveis dentre todas as questões associadas com a guerra civil inglesa. Depois da guerra, o dízimo obrigatório sobreviveu na Inglaterra até o século 20.

O texto clássico

Roubará o homem a Deus? Todavia, vós me roubais e dizeis: Em que te roubamos? Nos dízimos e nas ofertas. Com maldição sois amaldiçoados, porque a mim me roubais, vós, a nação toda. Trazei todos os dízimos à casa do Tesouro, para que haja mantimento na minha casa; e provai-me nisto, diz o SENHOR dos exércitos, se eu não vos abrir as janelas do céu e não derramar sobre vós bênção sem medida Ml 3.8-10.

Esse é o texto clássico usado para ensinar aos membros da igreja a prática do dízimo, isto é, entregar à igreja de 10% do salário bruto mensal. É concordância generalizada entre os evangélicos que o dízimo não é dado, mas, sim, “devolvido” a Deus. Não poucos testemunhos confirmam que dar o dízimo acarreta bênção e o contrário traz maldição:

Temos um colega que recebeu uma carta de uma senhora que foi membro de sua Igreja e ele chorou amargamente ao ler aquela carta, porque aquela senhora dizia o seguinte: Pastor, eu lhe agradeço por tudo quanto o senhor me fez durante o tempo em que fui membro da sua Igreja. Mas eu fui obrigada a me mudar dessa localidade e fui frequentar outra Igreja. O senhor nunca me falou a respeito do dízimo. O outro pastor me ensinou a ser dizimista, e Deus me abriu as janelas dos céus e me tem dado tantas e tão grandes bênçãos que eu lamento ter perdido doze anos na sua Igreja recebendo maldição, quando Deus tinha uma bênção sem medida para mim, se eu fosse fiel. Um pastor que recebe uma carta assim só pode chorar.3

Testemunhos dessa natureza prendem a atenção dos ouvintes e são usados para confirmar a veracidade do ensino a respeito do dízimo. É difícil discordar de algo que produz resultados como este:

Certo dia, quando recolhíamos os dízimos, eu li este versículo. Estava presente um engenheiro que, tendo sido muito rico, perdera tudo em poucas semanas, e quando eu li este versículo, ele compreendeu que isso tinha acontecido na sua vida, e, naquela hora, prometeu a Deus que ia ser fiel na entrega dos dízimos. O que Deus fez e está fazendo na vida daquele homem é simplesmente espantoso. Um ano depois, este engenheiro era presbítero da minha Igreja e podia dizer: Hoje eu sou muito mais rico do que era quando Deus assoprou minha riqueza, porque Ele já me devolveu em dobro o que assoprou. Esse homem tem sido uma bênção na Igreja e no seu trabalho.4

Doutrina, por mais atrativa que seja, não pode ter sua autoridade respaldada pela experiência. O texto sagrado deve ser o único pilar sobre o qual se assenta o ensino. Qualquer outro alicerce deve ser considerado supérfluo e indesejável. Sabemos também que a doutrina não pode ser baseada num único texto. É necessário que haja uma concordância com outras partes do Livro Santo. Examinemos se o dízimo, tal como é ensinado acima, confirma-se à luz das Escrituras.

O Novo Testamento ensina a prática do dízimo?

Uma primeira constatação é que não há, no Novo Testamento, nenhum parâmetro mínimo estipulado para a contribuição. O apóstolo Paulo organizou uma grande coleta para os necessitados da Judéia. As duas epístolas aos Coríntios trazem referência a esta coleta:

Quanto à coleta para os santos, fazei vós também como ordenei às igrejas da Galácia. No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de parte, em casa, conforme a sua prosperidade, e vá juntando, para que se não façam coletas quando eu for 1 Co 16.1-2.

Nos capítulos 8 e 9 de 2 Coríntios, Paulo desenvolve seu ensino acerca das contribuições. Estes textos se referem à alegria da contribuição, à generosidade, à liberalidade, à presteza em ofertar:

E isto afirmo, aquele que semeia pouco, pouco também ceifará; e o que semeia com fartura com abundância também ceifará (9.6).
... porque, no meio de muita prova de tribulação, manifestaram abundância de alegria, e a profunda pobreza deles superabundou em grande riqueza da sua generosidade (8.2).
Pedindo-nos, com muitos rogos, a graça de participarem da assistência aos santos. (8.4).
... assim, como revelastes prontidão no querer, assim a leveis a termo, segundo as vossas posses (8.11).   
porque bem reconheço a vossa presteza, da qual me glorio... ( 9.2).

Não vemos nenhuma referência a uma contribuição mínima que é obrigatória – o dízimo – e a partir daí, ofertas voluntárias. Ao contrário, o ensino de Paulo é que, se a contribuição não for voluntária, não deve ser dada:

Não vos falo na forma de mandamento, mas para provar, pela diligência de outros, a sinceridade do vosso amor (8.8).
Porque, se há boa vontade, será aceita conforme o que o homem tem e não segundo o que ele não tem (8.12).
Cada um contribua segundo tiver proposto no coração, não com tristeza ou por necessidade; porque Deus ama a quem dá com alegria (9.7).
Ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres (...) se não tiver amor, nada disso me aproveitará (1 Co 13.3).

Ofertas voluntárias são o método de contribuição do Novo Testamento:

E sabeis também vós, ó filipenses, que, no início do evangelho, quando parti da Macedônia, nenhuma igreja se associou comigo no tocante a dar e receber, senão unicamente vós outros; porque até para Tessalônica mandastes não somente uma vez, mas duas, o bastante para as minhas necessidades. Não que eu procure o donativo, mas o que realmente me interessa é o fruto que aumente o vosso crédito. Recebi tudo e tenho abundância; estou suprido, desde que Epafrodito me passou às mãos o que me veio de vossa parte como aroma suave, como sacrifício aceitável e aprazível a Deus (Fp 4.15-18).

Paulo usa a figura dos sacrifícios veterotestamentários com relação às ofertas:
As ofertas dos filipenses foram, diante de Deus, “como aroma suave, como sacrifício aceitável e aprazível a Deus”.

Mas aquele que está sendo instruído na palavra faça participante de todas as coisas boas aquele que o instrui (Gl 6.6). Paulo, aqui, faz referência à obrigação de dar sustento àqueles que se afadigam no ensino da Palavra. Ensino repetido em 2 Tessalonicenses 5.12:

Agora, vos rogamos, irmãos, que acateis com apreço os que trabalham entre vós e os que vos presidem no Senhor e vos admoestam; e que os tenhais com amor em máxima consideração, por causa do trabalho que realizam.

E mais detalhado em 1 Coríntios 9:

Não temos nós o direito de comer e beber? (v 4) Ou somente eu e Barnabé não temos direito de deixar de trabalhar? (v 6 – Paulo refere-se ao trabalho secular).
Se nós vos semeamos as cousas espirituais, será muito recolhermos de vós bens materiais? (v 11)
Não sabeis vós que os que prestam serviços sagrados do próprio templo se alimentam? E que serve ao altar do altar tira o seu sustento? (v 13).

A referência aqui é a Dt 18.1, que permite aos levitas comer partes dos sacrifícios oferecidos no Templo.

De fato, existe o direito bíblico (do qual Paulo abriu mão, pelo menos com relação aos coríntios – 1 Co 9.15 – e aos tessalonicenses – 1 Ts 2.7,9; 2 Ts 3.8-9) de os pregadores, pastores e mestres serem sustentados pelas suas congregações:
Assim ordenou também o Senhor aos que pregam o evangelho que vivam do evangelho. (v 14)...

Porém não há referência a dízimos.

Algumas outras citações, entre muitas:

... compartilhai as necessidades dos santos (Rm 12.13).
... façamos o bem a todos, mas principalmente aos da família da fé (Gl 6.10).

Aquele que furtava não furte mais; antes, trabalhe, fazendo com as próprias mãos o que é bom, para que tenha com que acudir ao necessitado (Ef 4.28).

Exorta aos ricos do presente século ... que sejam generosos em dar e prontos a repartir (1 Tm 6.17-18).

Note o ensino consistente e positivo do Novo Testamento a respeito da generosidade, da liberalidade, da prontidão em repartir. Em contrapartida negativa, temos muitas advertências a respeito da avareza:

O que foi semeado entre os espinhos é o que ouve a palavra, porém os cuidados do mundo e a fascinação das riquezas sufocam a palavra, e fica infrutífera (Mt 13.22).

Tende cuidado e guardai-vos de toda e qualquer avareza; porque a vida de um homem não consiste na abundância dos bens que ele possui (Lc 12.15).

Sabei, pois, isto: nenhum avarento, que é idólatra, tem herança no reino de Cristo e de Deus (Ef 5.5).
Porque nada temos trazido para o mundo, nem coisa alguma podemos levar dele. Tendo sustento e com que nos vestir, estejamos contentes. Ora, os que querem ficar ricos caem em tentação e cilada, e em muitas concupiscências insensatas e perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e perdição. Porque o amor do dinheiro é raiz de todos os males; e alguns, nessa cobiça, se desviaram da fé e a si mesmos se atormentaram com muitas dores 1 Tm 6.7-10.

Seja a vossa vida sem avareza (Hb 13.5).

Essa é a doutrina. Isso é o que devemos ensinar. O que passar disso pode ser considerado ensino bíblico?

Jesus ensinou a prática do dízimo?

Argumenta-se que Jesus ensinou que devemos dar o dízimo em Mateus 23.23:

Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque dais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho e tendes negligenciado os preceitos mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia e a fé; devíeis, porém, fazer estas coisas, sem omitir aquelas!

Note que, obedecer aos preceitos mais importantes da lei, sem omitir o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, é o que Jesus afirma. De fato, esta afirmação de Jesus nos remete à discussão sobre a Lei e a Graça, o Velho e o Novo Testamento, a Antiga e a Nova Aliança. Não ignoramos a profecia de Jeremias:

Eis aí vêm dias, diz o SENHOR, em que firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá... (31.31).

Esta profecia foi lembrada pelo autor de Hebreus que ensina a respeito de Jesus como Mediador de superior aliança instituída com base em superiores promessas (8.6), e completa:

Quando ele diz Nova, torna antiquada a primeira. Ora, aquilo que se torna antiquado e envelhecido está prestes a desaparecer (8.13).

Paulo afirma o mesmo com outras palavras:

De maneira que a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados por fé. Mas, tendo vindo a fé, já não permanecemos subordinados ao aio (Gl 3.24-25).

Sabemos que há dois testamentos, duas alianças – uma antiga, que já passou, e uma nova, que vigora. Mas, quando começou a vigorar a nova aliança, o novo testamento? Hebreus responde:

Porque, onde há testamento, é necessário que intervenha a morte do testador; pois um testamento só é confirmado no caso de mortos; visto que de maneira nenhuma tem força de lei enquanto vive o testador. (Hb 9.16-17)

Oh! Que significado tem as palavras de Jesus na última ceia: porque isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados. (Mt 26.28).

Vemos, assim, que os evangelhos retratam acontecimentos da antiga aliança. Poderíamos dizer que o Antigo Testamento se estende até Mateus 27.50 quando Jesus, clamando outra vez com grande voz, entregou o espírito.

Dessa forma, podemos entender muitas passagens do NT:

Em Lc 1.15, o anjo Gabriel consagra João Batista ao nazireado, conforme Nm 6.3.
Em Lucas 2.21, Jesus é circuncidado obedecendo ao disposto em Levítico 12.3. 
Em Lucas 2.22, Maria se purifica conforme estabelecido em Levítico 12.4.
Em Lucas 2.23, os pais de Jesus oferecem o sacrifício prescrito em Levítico 12.6-8.
Em Mateus 8.4, Jesus manda um leproso fazer o sacrifício prescrito em Levítico 14.
Em Lucas 19.8, Zaqueu se submete duplamente à pena estabelecida em Êxodo 22.9.
Em Mateus 17.24, Jesus paga o imposto estipulado em Êxodo 30.11-16.
Em Mateus 26.17, Jesus e os discípulos cumprem o requerido em Êxodo 12.1-27.

Entendemos, então que, enquanto Jesus vivia, a Lei Mosaica estava em vigor. Como entender Mt 8.4, onde Jesus ordena a apresentação de um sacrifício de animal ao que havia sido curado de lepra? É necessário que façamos isso hoje? Evidentemente que não. Da mesma forma, quando em Mt 23.23 Jesus ordena aos fariseus que deem o dízimo do cominho, da hortelã e do endro, devemos entender que eles estavam debaixo da mesma aliança mosaica que obrigou o leproso a cumprir o ritual de Levítico 14. Há, portanto, nos relatos dos evangelhos, um aspecto de transição entre o que é e o que há de vir. Por isso é preciso cuidado para não impor sobre o Novo Israel prescrições relativas ao Antigo Israel. Pois não estais debaixo da lei e sim da graça (Rm 6.14).

O dízimo está acima da Lei?

Existe uma passagem em Gênesis 14.20 – E de tudo lhe deu Abrão o dízimo – que é usada para defender a prática do dízimo como supralegal, ou seja, acima da lei. Eis o argumento: Abrão deu o dízimo a Melquisedeque, rei de Salém, antes da Lei ser estabelecida. Logo o dízimo é antes da Lei. Portanto, o dízimo perdura após o fim da Lei.

Tomemos outra passagem para testar a validade da argumentação acima – Gn 17.10: Esta é a minha aliança, que guardareis entre mim e vós e a tua descendência: todo macho entre vós será circuncidado. Em Gn 17.23-27, vemos Abraão circuncidando-se a si, a Ismael e a todos os homens de sua casa. Argumentemos: Abrão circuncidou-se antes da Lei ser estabelecida. Logo, a circuncisão é antes da Lei. Portanto, a circuncisão perdura após o fim da Lei.

Temos verificado que, se esse argumento é procedente para validar o dízimo, é da mesma forma procedente para justificar a prática da circuncisão.

Uma preciosa norma de interpretação afirma que um texto descritivo pode ilustrar uma doutrina, porém não pode ser base de doutrina. Mas é frequente cair neste erro. Toda a doutrina pentecostal do batismo com o Espírito Santo esta assentada sobre o livro de Atos – descritivo por excelência. Usando textos descritivos, grupos sectaristas ensinam, por exemplo, o lava-pés (Ora, se eu, sendo o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros – Jo 13.14); que a Ceia deve ser celebrada com pão asmo (cf. Mt 26.17-19; Êx 12.1-27 – porém esquecem que Jesus usou também vinho e não o suco de uva que a maioria das igrejas usa atualmente); que o batismo só é válido quando feito em rio – “rios de águas correntes” é a expressão usada (Mt 3.6). Kenneth Hagin, o divulgador da “teologia” da prosperidade erige um verdadeiro arranha-céu doutrinário sobre uma única afirmação de Jesus:

Por isso, vos digo que tudo quanto em oração pedirdes, crede que recebestes, e será assim convosco (Mc 11.24).

Portanto, se é correto que não se pode basear doutrina sobre texto descritivo, tanto Mt 23.23 quanto Gn 14.20 ficam invalidados para se justificar a prática atual do dízimo.

O Dízimo e a Lei Mosaica

Trazei todos os dízimos... (Ml 3.10).

Nenhum profeta do Antigo Testamento criou doutrina nova. A síntese do que diziam pode ser resumida na seguinte sentença: Voltem para a Lei. Em outras palavras, “lembrem-se do que Moisés vos prescreveu”! Se quisermos saber mais a respeito do dízimo, devemos nos voltar para suas prescrições no Pentateuco. E é aí que encontraremos algumas surpresas:

* Em Lv 27.30-33, aprendemos que os dízimos são Santos ao SENHOR.
* Em Nm 18.21ss aprendemos que os dízimos são herança dos Levitas.
* Porém, em Dt 12.5ss e 14.22ss, aprendemos a respeito da dinâmica da entrega dos dízimos: eles eram comidos e bebidos pelo próprio ofertante e sua família no Templo, diante do SENHOR, numa celebração alegre e festiva: A esse lugar [o Templo] fareis chegar os vossos ... dízimos... Lá comereis perante o SENHOR, vosso Deus, e vos alegrareis... (12.6-7)

Se o caminho até o Templo fosse longo, o israelita poderia vender o seu dízimo e, chegando a Jerusalém, comprar tudo o que deseja a tua alma: vacas, ovelhas, vinho ou bebida forte, ou qualquer coisa que te pedir a tua alma; come-o ali perante o SENHOR, teu Deus, e te alegrarás, tu e a tua casa. (14.26).

Repetidamente, há a recomendação de não desamparar o levita (12.12, 18, 19; 14.27). E, finalmente, no capítulo 14 uma ordem especial:

Ao fim de cada três anos, tirarás todos os dízimos do fruto do terceiro ano e os recolherás na tua cidade. Então, virão o levita (pois não tem parte nem herança contigo), o estrangeiro, o órfão e a viúva que estão dentro da tua cidade, e comerão, e se fartarão, para que o SENHOR, teu Deus, te abençoe em todas as obras que as tuas mãos fizerem. (v 28-29)

Portanto, vemos claramente que somente de 3 em 3 anos o dízimo era entregue integralmente aos levitas. Nos anos restantes ele era consumido alegremente “perante o SENHOR” pelo próprio ofertante, por sua família e por muitos convidados, num grande banquete. Em Ne 13.10-12, vemos a restauração da prática do dízimo no Judá pós-exílio. Ali está a referência aos “depósitos” onde eram armazenados os dízimos.

Que prática olvidada pelo povo Malaquias estava se referindo? A tudo o que acabamos de descrever do livro de Deuteronômio. Portanto, se quisermos usar o profeta para restaurar a prática do dízimo, não podemos omitir os textos Mosaicos a que ele está se referindo, pois uma boa norma de hermenêutica diz que um texto não pode significar para nós o que não significou para os seus destinatários originais.

O Dízimo e os Profetas

A esta altura, uma pergunta se faz necessária:

É correto que um texto do Antigo Testamento, de modo geral ou um texto de alguns dos profetas, seja usado como base para ensinar a prática ou a abstenção de algum preceito?
Alguns respondem que sim, desde que se trate da lei moral, que continuamos obrigados a cumprir e não da lei cerimonial, que foi revogada. Mas, como fazer tal distinção? Exemplifiquemos com o conhecido texto do profeta Isaías (capítulo 58) sobre o jejum aceitável a Deus:

Seria este o jejum que escolhi, que o homem um dia aflija a sua alma, incline a sua cabeça como o junco e estenda debaixo de si pano de saco e cinza? ... Porventura, não é este o jejum que escolhi: que soltes as ligaduras da impiedade, desfaças as ataduras da servidão, deixes livres os oprimidos e despedaces todo jugo? É moral ou cerimonial o que escreve o profeta? E o final do discurso quando Isaías afirma: Se desviares o pé de profanar o sábado e de cuidar dos teus próprios interesses no meu santo dia; se chamares ao sábado deleitoso e santo dia do SENHOR, digno de honra, e o honrares não seguindo os teus caminhos, não pretendendo fazer a tua própria vontade, nem falando palavras vãs, então, te deleitarás no SENHOR. Eu te farei cavalgar sobre os altos da terra e te sustentarei com a herança de Jacó, teu pai, porque a boca do SENHOR o disse.

Guardar o sábado é moral ou cerimonial? Frequentemente aquilo que parece cerimonial está inextrincavelmente ligado ao que, sem dúvida, é moral.

Não comereis coisa alguma com sangue, não agourareis, nem adivinhareis. Não cortareis o cabelo em redondo, nem danificareis as extremidades da barba (Lv 19.26).

Não contaminarás a tua filha, fazendo-a prostituir-se... guardareis os meus sábados... não vos voltareis para os necromantes, nem para os adivinhos.

Lemos, também, que Deus quis matar Moisés porque este não havia circuncidado seus filhos (Êx 4.24-26), e que a pena de morte era prescrita para quem não guardasse o sábado (Êx 31.14-15). Para o judeu comer comida kosher (pura), guardar o sábado, circuncidar a si e seus filhos e usar barba era tão moral quanto não consultar necromantes ou adivinhos e não prostituir sua filha. Portanto, como justificar que usar Malaquias 3.10 para se requerer a prática do dízimo é legítimo e não é legítimo usar Isaías 58.13 para se exigir a guarda do sábado? Por que critério Malaquias 3.10 é atual e não Malaquias 4.4? Lembrai-vos da lei de Moisés, meu servo, a qual lhe prescrevi em Horebe para todo o Israel, a saber, estatutos e juízos. E, se Malaquias 3.10 continua vigorando, onde o Livro Santo nos autorizou a alterar a prática do dízimo conforme prescrita pela lei de Moisés?

Calvino e a mordomia5

Calvino, nos Comentários dos Cinco Livros de Moisés, nos trechos referentes às primícias, aos dízimos e às oferendas, escreve que estas prescrições têm um significado espiritual. Assim, comentando a exigência do imposto do templo (Ex 30.16) ele escreve:
Deus os taxou todos a uma e a mesma soma, a fim de que, desde o maior até o menor, cada qual, qualquer que fosse o seu estado ou qualidade, reconhecesse que Lhe pertencia inteira e totalmente. E não é de maravilhar, visto que era esse (como se diz) um direito pessoal e as faculdades não se creditam a que o rico, de fato, contribuísse mais do que o pobre, mas antes, que o tributo era pago igualmente pessoa por pessoa.

Comentando o texto de Mt 17.24 ele acrescenta:

Sabemos que a Lei lhes impunha pagar cada um anualmente meio estáter e que Deus, que os havia resgatado, era para eles o Rei Soberano.

Ou seja, para Calvino, este imposto simboliza a redenção que Jesus efetua em favor de cada pessoa do seu povo. Da mesma forma, comentando sobre as primícias, “Calvino afirma que São Paulo mostra que se a oferta das primícias, como rito, foi abolida, guarda-nos, todavia, o significado espiritual.”6 Sem a cerimônia, permanece ainda a verdadeira observância, quando nos exorta ele a glorificar o nome de Deus, até mesmo no beber e no comer. (1 Co 10.31)7

Comentando o voto de Jacó em Gn 28.22 (E, de tudo quanto me concederes, certamente eu te darei o dízimo), Calvino escreve:

Os atos externos não caracterizam os verdadeiros servidores de Deus, são apenas subsídios de piedade.8

Comentando 2 Co 8.8, o reformador escreve:

Verdade é que, por toda parte, ordena Deus que acorramos a ajudar os irmãos em suas necessidades; mas, verdade é também que nenhuma passagem há em que nos defina a soma, quanto lhes devemos dar, a fim de que, feita estimativa de nossos bens, repartamo-los entre nós e os pobres; nem, de maneira semelhante, onde nos obriga a certas circunstâncias, nem de tempo, nem de pessoa, nem de lugar, mas à regrada caridade nos conduz.9

No entanto, Calvino não deixa de enfatizar aquilo que já vimos: o ensino a respeito da generosidade e a precaução contra a avareza:

A vontade liberal é agradável a Deus tanto do pobre quanto do rico... verdade é que é bem certo que devemos a Deus não apenas uma parte, mas, afinal, tudo o que somos e tudo o que temos. Entretanto, segundo Sua benevolência, até esse ponto nos poupa, que Se contenta desta comunicação que o Apóstolo aqui ordena. O que, pois, ensina ele aqui é um relaxamento, por assim dizer, daquilo a que somos obrigados no rigor do direito. Contudo nosso dever é estimular-nos a nós mesmos a darmos com frequência. Não há de temer que sejamos exageradamente descomedidos neste aspecto, pelo contrário, há é o perigo de sermos demasiado sovinas.10

Ainda comentando 2 Co 8.8, Calvino acrescenta:

Ora, esta doutrina é necessária contra um bando de visionários que pensam que nada havemos feito, se não nos despojamos inteiramente para termos tudo em comum. Na verdade, tanto fazem por sua fantasia, que ninguém pode dar ajuda em boa consciência. Eis porque é preciso observar-se diligentemente a moderação de São Paulo, a saber, que nossa ajuda seja agradável a Deus, quando de nossa abundância acorrermos à necessidade dos irmãos, não de tal maneira que tenham a ponto de regurgitarem, enquanto nós ficamos na condição de necessitados, mas antes, que do nosso distribuamos segundo o permite nossa própria capacidade, e com alegria de coração e ânimo disposto.11  

Conclusão

Todos os presbiterianos, por ocasião de sua profissão de fé, ouvem as seguintes palavras: Crê que as Escrituras Sagradas do Velho e do Novo Testamento são a Palavra de Deus e a única regra de fé e prática dada por Ele à sua Igreja, e que são falsas e perigosas todas as doutrinas e cerimônias contrárias a essa palavra, e todos os usos e costumes acrescentados à simples lei do Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo? Ao que respondemos: Creio

O que devemos fazer? A confissão que fizemos nos lembra que tudo o que é extrabíblico é, na verdade, antibíblico, que qualquer imposição que se revele sem raízes nas Escrituras deve ser considerada falsa e perigosa, mesmo que tenha sido instituída com propósitos elevados.

O dízimo tradicionalmente praticado pelos evangélicos é bíblico? Se não for, não pode ser legitimamente exigido de nenhum membro. Já se afirmou que se o dízimo for extinto a igreja perderá o seu sustento. Ora, este não é um argumento bíblico. Respondemos que a doutrina bíblica nunca prejudicará a vida da igreja e que a verdade jamais será perniciosa; pelo contrário, se tivermos a determinação de ensinar que os membros são livres para dar ou não dar, que não há patamar mínimo exigido, que Deus ama a quem dá com alegria, que devemos ser generosos, guardar-nos da avareza, ser prontos em repartir, acumular tesouros no céu..., Deus responderá derramando sobre a Sua igreja bênçãos sem medida.



NOTAS:

1. Presbítero da Igreja Reformada Presbiteriana em Maricá.
2. Extraído da Enciclopédia Histórico-Teológica da Bíblia. Ed. Vida Nova. Verbete “dízimo”. Negrito acrescentado. A afirmação destacada merece consideração, pois os puritanos, nossos antepassados, representam o ápice do movimento reformado.
3. Extraído do livreto Fidelidade. Mordomia Cristã. Dízimo -- método divino de contribuição, do Rev. Jacob Silva. Ed. do Autor. São Paulo. 1983. p..22-23
4. Idem, p. 21.
5. Calvino deixou em sua vastíssima obra, valiosos e densos comentários sobre a vida material: riquezas, propriedades, trabalho, descanso, banqueiros, empréstimos, impostos, diaconia, remuneração, etc. Para quem quiser se aprofundar neste assunto, recomendo a obra O Pensamento Econômico e Social de Calvino, de André Biéler, publicado pela Casa Editora Presbiteriana.
6. Biéler, op. cit. p. 473, negrito acrescentado.
7. Sermão de Calvino sobre Dt 14.21-28.
8. Comentários dos Cinco Livros de Moisés
9. Comentários do Novo Testamento de 2 Co 8.8.
10. Idem.
11. Idem.



Autor: Túlio Cesar Costa Leite
Fonte: Monergismo