12 de junho de 2016

O Jejum (2/2)


Quero expressar o problema em termos ainda mais incisivos do que isso. Há pessoas que advogam o jejum como uma das melhores maneiras ou métodos de se obter bênçãos da parte de Deus. Uma porção de recente literatura parece culpada dessa distorção. Algumas pessoas têm escrito acontecimentos notáveis sobre suas vidas, e então testificam: “A minha vida cristã sempre me pareceu vinculada a fracassos e derrotas, e nunca me senti verdadeiramente feliz. Minha vida parecia uma série de altos e baixos. Eu já era crente, mas parecia-me não ter recebido certas coisas que outras pessoas, a quem eu conhecia, possuíam. E isso se prolongou durante vários anos. Eu já havia frequentado todas as convenções, eu já lera os livros recomendados mas jamais recebera a grande bênção. Então aconteceu-me encontrar o ensino que enfatiza a importância do jejum; e jejuei, e recebi a bênção”. E então, a exortação é: “Se você quer uma bênção, então jejue”. Isso me parece uma doutrina extremamente perigosa.

Nunca deveríamos falar desse modo, no que tange à vida espiritual. As bênçãos celestiais jamais se tornam automáticas. No momento em que começarmos a dizer, “Porquanto faço isto, obtenho aquilo”, isso significará que teremos começado a controlar a bênção divina. Isso é um insulto a Deus, violando a grande doutrina de Sua soberania final. Não, jamais deveríamos defender a prática do jejum como um meio de se receber alguma bênção.

Consideremos uma outra ilustração acerca desse ponto. Tomemos a questão dos dízimos, por exemplo. Esse é um outro assunto que também está voltando à proeminência. Ora, existem certas bases bíblicas excelentes para a prática dos dízimos. Entretanto, há muitos que tendem por ensinar essa questão dos dízimos conforme os seguintes moldes. Alguém escreve uma narrativa sobre a sua vida. Novamente, assevera que sua vida era insatisfatória. As coisas não iam bem com ele; de fato, estava enfrentando desastres financeiros em seus negócios. Mas eis que descobriu a doutrina bíblica do dízimo, e começou a dar os seus dízimos. Imediatamente, profunda alegria invadiu-lhe a alma. Não somente isso, entretanto, mas seus negócios também começaram a melhorar e a obter sucesso. Já li livros que chegam a dizer ousadamente o seguinte: “Se você realmente quer ser próspero, comece a dar os seus dízimos”. Vale dizer: “Pague os seus dízimos, e o resultado benéfico será inevitável. Se você quiser receber uma bênção, então comece a ser dizimista”. É precisamente a mesma coisa que se verifica no caso do jejum. Todos os ensinamentos dessa categoria são inteiramente antibíblicos. De fato, tais ensinamentos são piores ainda do que isso, pois detratam da glória e da majestade do próprio Deus. Por conseguinte, jamais deveríamos aceitar, praticar ou advogar a prática do jejum como um método ou como um meio para se obter diretamente qualquer bênção.

O valor do jejum é indireto, e não direto.

A última coisa que precisamos considerar sob esse título é que, conforme é lógico, devemos usar de grande cautela para não confundir aquilo que é físico com aquilo que é espiritual. Por enquanto, não podemos ventilar plenamente essa questão; mas, tendo lido algumas narrativas sobre pessoas que têm posto em prática o jejum, penso que elas cruzaram a fronteira do físico para o espiritual. Elas descrevem como, após o mal-estar físico inicial, durante os três ou quatro primeiros dias, e especialmente após o quinto dia, houve um período de notável clareza mental. E algumas vezes essas pessoas descrevem tais sensações como se elas fossem de natureza inteiramente espiritual. Ora, não posso provar que isso não é espiritual; mas posso afirmar com segurança: pessoas que não são crentes, mas que experimentam períodos similares de abstinência de alimentos, invariavelmente testificam sobre resultados idênticos. Não se pode duvidar que o jejum, em um nível puramente físico e corporal, é algo excelente para nossa estrutura física, contanto que realizado de modo apropriado. Também não há que duvidar que um de seus resultados é uma maior perceptibilidade mental, uma maior clareza no entendimento. Não obstante, sempre devemos ter o máximo cuidado para não atribuirmos ao espiritual aquilo que pode ser explicado adequadamente por fatores físicos. Uma vez mais, temos nisso um profundo princípio geral. Isso é o que deveríamos replicar àqueles que afirmam estar envolvida alguma questão de fé ou de santidade, como também àqueles que anseiam por asseverar que se trata de algum fenômeno miraculoso, quando não há certeza absoluta a esse respeito. Prejudicamos a causa de Cristo ao atribuirmos a fatores miraculosos alguma coisa que pode ser explicada segundo um nível totalmente natural. Idêntico perigo se manifesta nessa questão do jejum — o perigo de confundirmos o espiritual com o físico.

Portanto, tendo considerado algumas maneiras erradas de se encarar a questão do jejum, examinemos agora a maneira certa. Já tive ocasião de sugeri-la. O jejum sempre deveria ser conceituado como um meio para se chegar a um fim, e não como um fim em si mesmo. O jejum só deveria ser praticado quando alguém se sentisse impelido ou fosse levado a isso por razões estritamente espirituais. O jejum não deve ser posto em prática somente porque algum segmento da igreja decretou essa prática às sextas-feiras, ou durante o período da Quaresma, ou durante qualquer outra época do ano. Não devemos jejuar mecanicamente. Antes, precisamos disciplinar nossas vidas. Deveríamos praticar esses preceitos religiosos o tempo todo, e não apenas em períodos prefixados. É mister que eu me discipline o tempo todo, mas devo jejuar somente quando sentir que estou sendo levado a isso pelo Espírito de Deus, quando eu tiver por objetivo algum elevado propósito espiritual. Jamais devo jejuar em harmonia com alguma regra ou norma, e, sim, porque sinto que há alguma necessidade peculiar de uma inteira concentração da inteireza do meu ser em Deus e na minha adoração a Ele. Então terá chegado, de fato, a oportunidade de jejuar, e essa é a maneira certa de abordar a questão.

Mas, voltemos nossa atenção para outro aspecto da questão. Tendo considerado o assunto em geral, passemos a considerá-lo na maneira como deve ser feito. A maneira errada é de chamar atenção ao fato que estamos jejuando. Quando jejuardes, não vos mostreis contristados como os hipócritas: porque desfiguram o rosto com o fim de parecer aos homens que jejuam. Naturalmente, quando eles jejuaram dessa forma as pessoas perceberam que eles estavam observando um período de jejum. Eles não lavaram os rostos, nem ungiram as suas cabeças. Alguns deles foram além desses fatos: eles desfiguraram seus rostos e colocaram cinzas sobre as cabeças. Queriam chamar atenção ao fato que estavam jejuando, por isso mantiveram a aparência de miseráveis, infelizes, e todos os que os olharam, disseram: “Ah! Ele está observando um período de jejum. Ele é uma pessoa de uma espiritualidade fora do comum. Olhe para ele, olhe o que ele está sacrificando e sofrendo por causa da sua devoção a Deus.” Nosso Senhor condena aquela atitude total e completamente. Qualquer pronunciamento do fato do que estamos fazendo, ou o chamar atenção para o mesmo, é algo que é inteiramente repreensível por Ele, como o foi no caso da oração e no ato de dar esmolas. É exatamente o mesmo princípio. Você não deve soar a trombeta proclamando as coisas que você irá fazer. Você não deve pôr-se de pé nas esquinas das ruas ou em lugares proeminentes na sinagoga quando você for orar. E, da mesma maneira, você não deve chamar atenção ao fato que está jejuando.

Entretanto, não devemos pensar somente na questão do jejum. Parece-me que esse é um princípio que cobre todos os ângulos de nossa vida cristã. Ele condena, igualmente, a questão da aparência piedosa proposital, a adoção de atitudes religiosas que dêem na vista. É patético observar-se como, às vezes, algumas pessoas caem nesse erro até mesmo ao entoarem hinos — erguem um pouco o rosto, em certos trechos, ou se põem nas pontas dos pés. Todas as atitudes assim são afetadas, e é quando as nossas atitudes são assim hipócritas que se tornam tão lamentáveis.

Por esta altura da exposição, posso formular uma pergunta, para a sua consideração e seu interesse? Dentro de todo esse assunto, onde cabe toda a questão das vestes do crente? Para mim, esse é um dos problemas mais atordoantes e causadores de perplexidade em relação à nossa vida cristã, pois eu mesmo vacilo entre duas opiniões óbvias. Há muita coisa em mim que não somente compreende, mas que também aprecia a prática dos primeiros “Quakers”, os quais costumavam trajar-se de maneira diferente das demais pessoas. A ideia deles era demonstrar a diferença que há entre crentes e incrédulos, entre a Igreja e o mundo — “precisamos dar uma impressão diferente”, disseram eles. Ora, diante disso, em todo crente deve haver algo que, de todo o coração, aprove tal prática com um “amém”. Sinto-me incapaz de entender o crente que queira parecer-se com um indivíduo típico, comum e mundano, em sua aparência externa, em suas vestes ou em qualquer outro particular — a loquacidade, a vulgaridade e a sensualidade. Crente nenhum deveria assemelhar-se a isso. Por conseguinte, existe algo de perfeitamente natural nessa reação do crente contra a aparência mundana e no seu desejo de ser diferente.

Infelizmente, porém, esse não é o único aspecto da questão. O outro aspecto é que necessariamente não expressa uma verdade o dito que “a roupa faz o monge”. A maneira de trajar-se revela quem a pessoa é, mas somente até certo ponto, e não completamente. Os fariseus vestiam roupas de talho particular — pois alargam os seus filactérios e alongam as suas franjas (Mateus 23:5) — mas isso em nada garantia a verdadeira retidão pessoal. Na realidade, a Bíblia ensina que, em última análise, não é assim que o crente se diferencia do incrédulo. Parece-me que é aquilo que eu sou que demonstra essa diferença. Se eu mesmo sou correto, em meu homem interior, tudo o mais seguir-se-á naturalmente. Portanto, não convém que eu proclame que sou crente vestindo-me de maneira diferente, e, sim, demonstrando aquilo que sou. Contudo, ponderemos. Temos aqui uma questão assaz, fascinante e atrativa. Penso que o mais provável é que ambas essas afirmações exibem facetas da verdade. Por sermos crentes, todos deveríamos desejar ser diferentes das pessoas mundanas, mas, ao mesmo tempo, jamais deveríamos descer àquela posição que assevera que as vestes é que revelam o que realmente somos. Aí, pois, está a maneira errada de se observar essa questão do vestuário; e o galardão, para essa maneira errada, continua sendo o mesmo que já fora visto no caso de todos aqueles outros falsos métodos: Em verdade vos digo que eles já receberam a recompensa (Mateus 6:2). Há indivíduos que imaginam que aqueles que jejuam ostensivamente são profundamente espirituais, são excepcionalmente santos. Esses recebem seu louvor da parte dos homens, mas isso constitui toda a sua recompensa, pois Deus vê os segredos dos corações. Ele vê o coração do homem e sabe que aquilo que é elevado entre homens, é abominação diante de Deus (Lucas 16:15).

Qual, pois, é a maneira correta do crente jejuar? Comecemos respondendo a isso negativamente. A primeira coisa é que o jejum não envolva um esforço distorcido, conforme faziam os fariseus. Por ter nosso Senhor dito: Tu, porém, quando jejuares, unge a cabeça e lava o rosto; com o fim de não parecer aos homens que jejuas, e, sim, ao teu Pai em secreto, muitos pensam que não somente não deveríamos desfigurar o rosto, mas igualmente deveríamos fazer todo o possível para ocultar que estamos jejuando, e até mesmo para darmos a impressão contrária. Tal opinião, entretanto, envolve um total mal-entendido. Nada havia de excepcional em se lavar o rosto ou em ungir os cabelos. Essa era a maneira usual e normal de se proceder. O que nosso senhor quis dizer, pois, é o seguinte: “Quando você jejuar, faça-o de maneira natural”.

Poderíamos aplicar essa recomendação como segue. Há pessoas que de tal maneira temem parecer mesquinhas, ou que temem ser consideradas tolas, porquanto são crentes, que se inclinam para o extremo oposto. No entanto, asseveram que devemos dar a impressão que ser crente é ser feliz e cheio de vida. E assim, longe de nos mostrarmos sombrios e circunspectos quanto às nossas vestes, precisamos ir para o extremo oposto. Deveríamos esforçar-nos ao máximo por não parecermos andrajosos. Mas o resultado disso é que aqueles que assim agem dão tão má impressão como aqueles que são acusados de andarem vestidos fora da moda. O princípio exarado por nosso Senhor é o seguinte: “Esqueça-se inteiramente das outras pessoas”. Assim, para evitarmos parecer melancólicos, não forcemos um sorriso nos lábios. Esqueçamo-nos de nosso rosto, esqueçamo-nos de nós mesmos, esqueçamo-nos totalmente das demais pessoas. O erro mais grave é essa preocupação com a opinião alheia. Não nos importemos com a impressão que estivermos dando a outros; simplesmente olvidemo-nos de nós mesmos e dediquemo-nos inteiramente à causa de Deus. Que nossa preocupação seja somente com Deus e sobre como podemos agradá-Lo em tudo. Preocupemo-nos exclusivamente com a Sua honra e glória.

Se a nossa maior preocupação for agradar a Deus e glorificar o Seu nome, então não encontraremos qualquer dificuldade quanto a essas outras coisas. Se um homem está vivendo inteiramente para a glória do Senhor, então ninguém precisa prescrever para ele quando deve jejuar, nem precisa prescrever para ele o tipo de roupas que deve usar, e nem precisa prescrever-lhe qualquer outra coisa. Se alguém esqueceu-se de si mesmo e se dedicou inteiramente a Deus, então o próprio Novo Testamento declara que esse alguém saberá como deve comer, beber e vestir-se, porquanto estará fazendo tudo para a glória de Deus. E graças damos a Deus, porque a recompensa dessa pessoa está garantida e assegurada, além de ser deveras poderosa — … e teu Pai que vê em secreto, te recompensará. A única coisa que importa é que a nossa relação com Deus esteja correta, e que o nosso objetivo seja agradar ao Senhor. Se essa for a nossa preocupação, então poderemos deixar todo o resto aos Seus cuidados. Talvez o Senhor retenha o nosso galardão durante anos; mas isso não importa. Receberemos a recompensa. As promessas divinas nunca falham. Embora o mundo jamais entenda quem somos, Deus o sabe, e, naquele grande Dia esse fato será proclamado diante do mundo inteiro. “E teu Pai que vê em secreto, te recompensará”.

Que os homens não te ouçam, não te amem e nem te louvem.

Mas, que importa isso: É o Senhor quem te aprova.




Autor: D. Martyn Lloyd-Jones
Trecho extraído do livro Estudos no Sermão do Monte, pág 321-331. Editora: Fiel
Via: Monergismo