15 de agosto de 2016

O Apocalipse


INTRODUÇÃO

O livro do Apocalipse pretende ser uma revelação dos eventos que ocorrerão no fim do século e do estabelecimento do Reino de Deus. A teologia básica do livro, portanto, é sua escatologia. Ele declara ser uma profecia das coisas que brevemente têm que acontecer (1:2,3), cujo evento central é a segunda vinda de Jesus Cristo (1:7).

Contudo, a interpretação deste livro tem sido a mais difícil e confusa de todos os livros do Novo Testamento. Ao longo da história da interpretação, várias abordagens distintas têm emergido. A abordagem mais fácil do Apocalipse é seguir sua própria tradição particular, como a opinião verdadeira, e ignorar as outras; mas o intérprete inteligente tem que se familiarizar com os vários métodos de interpretação, para que possa criticar e purificar sua própria opinião.

O CONTEÚDO DO APOCALIPSE

Visto que o livro tem que ser interpretado como um todo, temos que ter um esboço de seu conteúdo em mente. O esquema seguinte baseia-se na estrutura literária do livro, que é indicada pela expressão em espírito (1:10; 4:2; 17:3; 21:10).

A primeira visão (1:9-3:22) consiste do Cristo exaltado e suas cartas às sete igrejas. Cristo é visto em pé, em meio a sete candeeiros (1:12 e s.), simbolizando sua superintendência na vida de suas igrejas na terra. As cartas às sete igrejas (2-3) são sete cartas reais a sete igrejas na Ásia Menor. O fato de que outras igrejas existissem na Ásia, nessa época, sugere que sete delas são escolhidas para serem representantes de toda a Igreja. Aqui, nestas cartas, está a mensagem de Cristo para sua Igreja em todos os tempos.

A segunda visão (4:1-16:21) retrata o trono celestial com um livro selado com sete selos na mão de Deus. Este só pode ser aberto pelo Leão da tribo de Judá, que é o Cordeiro de Deus sacrificado (4:1-11). Segue-se uma série tripla de sete: a abertura dos sete selos (5:1-8:1), o toque das sete trombetas (8:2-9:21) e o esvaziamento das sete taças (15:1-16:21). Cada selo, trombeta e taça é seguida por uma representação simbólica de algo que acontece na terra. Antes do soar das sete trombetas, duas multidões são vistas: a primeira, 12.000 das doze tribos de Israel, é selada na testa (7:3), para não serem atingidos pelas pragas das trombetas (9:4). A segunda multidão é um corpo inumerável de redimidos, de todas as raças de homens (7:9-17), que "vêm da grande tribulação" (7:14).

Um tema central, nesta segunda visão, é o conflito entre Deus e Satanás, que está retratado, em cores mitológicas, como um grande dragão vermelho (12:3,4). O Dragão é frustrado em seus esforços para destruir o Messias (12:5), e, após ser derrotado na batalha com Miguel e os anjos (12:7 e ss.), dedica seus esforços à destruição da Igreja, na terra (12:17). Em busca deste propósito, o Dragão chama duas bestas (12:17-13:1; 13:11), que blasfemam contra Deus (13:6), desviam de Deus os corações dos homens (13:4,14) e perseguem a Igreja (13:7,15). Esta Besta e seu Falso Profeta (19:20) têm permissão para obter êxito em seu propósito e forçam sua lei sobre todos os homens (13:7,8,16,17).

A terceira visão (17:1-21:8) é a grande prostituta, Babilônia (17:1,5), a grande cidade, que tem domínio sobre todos os reis da terra (17:18). O julgamento e destruição da Babilônia são então anunciados e retratados (18:1-24), seguidos por um hino de louvor, por sua destruição (19:1-5).

O restante da terceira visão retrata a vitória final de Deus sobre os poderes do mal. Primeiro vem um hino de louvor, celebrando o casamento do Cordeiro e sua Noiva (19:6-10). Isto é seguido pelas cenas do Cristo conquistador cavalgando em direção ao julgamento e à vitória (19:11-16) e sua destruição da Besta e do Falso Profeta (19:17-21). Isto, por sua vez, é seguido pela vitória sobre o Dragão, que não é, no entanto, destruído de uma vez, como o foram a Besta e o Falso Profeta. Primeiro, ele é subjugado e trancado no "abismo sem fundo" por mil anos (20:1-3), enquanto Cristo e seus santos e mártires que "reviveram" (ezèsan) reinam sobre a terra (20:4-6). Isto se chama a "primeira ressurreição" (20:5). Ao fim deste reino intermediário, Satanás (o Dragão) é liberto de seu encarceramento, e uma vez mais engana as nações, incitando-as a lutar contra os santos (20:9). Satanás é agora destruído, com a Besta e o Falso Profeta, no lago de fogo (20:10). Então segue-se a segunda ressurreição, o juízo final (20:11-15), e a vinda do novo céu e da nova terra para ocupar o lugar dos antigos (21:1-8), onde os redimidos gozam da comunidade aperfeiçoada com Deus (21:3,4).

Uma visão final retrata a Jerusalém celestial, que é a Noiva, a esposa do Cordeiro (21:9-22:5). O livro termina com um Epílogo (22:6-21), convidando os homens a receberem a dádiva da vida por parte de Deus (22:17).

MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO

1. A interpretação Preterista

A interpretação dominante do Apocalipse no eruditismo crítico, trata o livro como um típico exemplo do gênero de literatura apocalíptica e o interpreta do mesmo modo como o Apocalipse de Enoque, a Assunção de Moisés, IV Esdras e Baruque são interpretados.1 Apocalipses são "panfletos para tempos ruins". Eles aparecem em tempos de perseguição e mal inusitados. O povo de Deus não pode entender o problema do mal na História ou porque tais sofrimentos medonhos ou perseguições recaem sobre eles. Os apocalipses foram escritos para responder a este problema e encorajar um povo em apuros.

A solução é encontrada na opinião de que Deus entregou este século aos poderes do mal, mas breve intervirá, para destruir o mal e estabelecer seu Reino. A mensagem dos apocalipses é dirigida aos seus próprios contemporâneos e, de modo algum, contém profecias do futuro, mas pseudoprofecias da história, reescritas à guisa de profecia.2

Todas as alusões a eventos históricos devem ser procuradas no meio histórico do livro em si. Esta interpretação supõe que o Apocalipse foi produzido por uma igreja que estava encarando a ameaça da medonha perseguição nas mãos de Roma, talvez na província da Ásia, onde o culto ao Imperador florescia. Logo, a Besta é um dos imperadores romanos, e o Falso Profeta é o culto de adoração ao Imperador. O autor assegura, aos cristãos, que mesmo que apareça um grande martírio, Cristo retornará brevemente, destruirá Roma e estabelecerá seu Reino na terra.3

Deve haver um elemento de verdade nesta abordagem, pois certamente o Apocalipse pretendia falar à sua própria geração. Mas, para a interpretação preterista, o Apocalipse não é uma profecia mais verdadeira do que seu apocalipse contemporâneo, IV Esdras. Há, contudo, algumas diferenças entre o Apocalipse e os apocalipses judaicos,4 a mais importante das quais é a sua consciência de estar dentro da corrente da Heilsgeschichte ou história da redenção, o que falta aos apocalípticos judaicos. Portanto, embora possamos reconhecer as sombras dos eventos contemporâneos no Apocalipse, temos que concluir que o simbolismo elaborado da literatura apocalíptica judaica foi empregado nos interesses de uma previsão profética da consumação do propósito da redenção por parte de Deus.5

2. O Método Histórico

Esta interpretação, que é aceita pelos Reformadores, vê, no Apocalipse, uma profecia da história da Igreja. Eventos específicos, nações e personagens são buscados na história da Igreja, que se enquadrem nos selos, trombetas, taças, etc. A mais importante identificação, nesta interpretação, é a identificação da Besta e do Falso Profeta com o papado em seus aspectos políticos e religiosos. Este método pode ser milenarista (I. Newton, Bengel, H. Alford), não milenarista (Lutero, Hengstenberg), ou pós-milenarista (D. Brown). Uma grande dificuldade, com este ponto de vista, é que não se chegou a nenhum consenso quanto à finalidade real do delineamento da história prevista no Apocalipse.

3. O Método Simbólico ou Idealista

Um dos métodos mais atraentes é o que vê no Apocalipse apenas símbolos dos poderes espirituais atuando no mundo. A mensagem do livro é a garantia aos santos sofredores do triunfo final de Deus, sem a predição de eventos concretos, nem no passado nem no futuro. William Milligan é um notável expoente deste ponto de vista (Expositor's Bible). A objeção a esta opinião é que o gênero de literatura apocalíptica sempre usava simbolismo apocalíptico para descrever os eventos da História; e temos que esperar que o Apocalipse compartilhe pelo menos desta característica com os outros livros deste caráter.

4. A Interpretação Futurista Extrema: O Dispensacionalismo6

Um ponto de vista, que se tornou profundamente arraigado em muitas igrejas evangélicas americanas, interpreta o Apocalipse em termos de sua premissa dispensacionalista de dois programas divinos diferentes: um para Israel e um para a Igreja. Todos os selos, "trombetas e taças pertencem à grande tribulação; e, visto que esta é a hora da "angústia para Jacó" (Jr. 30:7), por definição, tem a ver com Israel, e não com a Igreja. Nos capítulos 2 e 3, a Igreja é vista na terra, mas "igreja" não mais ocorre no livro, exceto em 22:16. Os vinte e quatro anciãos vistos ao redor do trono de Deus são tidos como a Igreja, transportada e recompensada (4:4). Logo, o arrebatamento da Igreja tem que ocorrer em 4:1; e o povo de Deus na terra são os judeus, doze mil de cada uma das doze tribos (7:1-8), que proclamam "o evangelho do Reino" durante a tribulação e ganham uma grande hoste de gentios (7:9-17). A Besta é o chefe do Império Romano, que será restaurado nos últimos dias.A profecia em Daniel 9:27 é também entendida como se referindo ao chefe deste império restaurado. Os últimos sete anos começarão com um pacto entre a Besta (o anticristo) e Israel,8 que a Besta romperá após três anos e meio, e então, enfurecida, perseguirá os judeus. O grande conflito, no Apocalipse, se dará entre o anticristo e Israel, não entre o anticristo e a Igreja. Visto que os capítulos 4 a 19 têm a ver com o período de tribulação, somente os capítulos 2 e 3 têm a ver com a Igreja e a era da Igreja. A opinião usual tem sido que as sete igrejas representam sete períodos sucessivos da história da Igreja, sendo o período final o da apostasia e da apatia espiritual.9 Esta opinião, contudo, tem sido substituída por teólogos dispensacionalistas contemporâneos.10

5. O Ponto de Vista Futurista Moderado11

O Apocalipse afirma representar a consumação do propósito redentor de Deus, contendo tanto o juízo como a salvação. Um dos principais problemas, na interpretação deste livro, é a relação entre os selos, trombetas e taças. Na solução deste problema pode estar a chave para a interpretação do livro. João vê o livro na forma de um pergaminho, selado com sete selos, ao longo de sua borda externa, na mão de Deus. Não foi encontrada nenhuma criatura capaz de romper os selos e abrir o livro, exceto o Leão da tribo de Judá, que era o Cordeiro sacrificado. Isto acentua a nota principal do livro. O Leão conquistador, que pode sozinho descobrir os propósitos ocultos de Deus, é o Jesus que morreu na cruz.

O pequeno livro está na forma de um testamento antigo, que era usualmente selado com os selos das sete testemunhas. O livro contém a herança de Deus para seu povo, que é encontrada na morte de seu Filho.12 A herança dos santos é o Reino de Deus; mas as bênçãos do Reino de Deus não podem ser concedidas sem a destruição do mal. De fato, a própria destruição de todos os poderes do mal é uma das bênçãos da lei Real de Deus. Eis, aqui, o duplo tema do Apocalipse: o julgamento do mal e a vinda do Reino.

O rompimento sucessivo dos selos não abre gradualmente o livro. Seu conteúdo não pode ser revelado enquanto o último selo não for rompido. Contudo, enquanto cada selo é rompido, algo acontece. Após o primeiro selo, a conquista domina a terra; depois do segundo, a guerra; então a fome, a morte e o martírio. O sexto selo nos traz o fim do século e a vinda do grande Dia do Senhor e da ira do Cordeiro (6:16,17). Isto sugere que os eventos que sucedem ao romper dos selos não constituem o fim, em si, mas eventos que levam ao fim. Esta estrutura encontra paralelo em Mateus 24, onde guerras, fome e outros males não são senão "o princípio das dores", não o fim, em si (Mt 24:8). Além disso, o cavalo branco conquistador tem paralelo em Mateus 24:14, e retrata as vitórias a serem alcançadas pela pregação do evangelho no mundo. Muitos comentadores acham que os quatro cavaleiros devem ser semelhantes em tipo, e que o cavalo branco, portanto, representa algum poder maligno. Contudo, nenhuma dor é mencionada, como com os outros cavaleiros, e o branco, no Apocalipse, é sempre associado a Cristo ou com vitória espiritual.13 Que a pregação do evangelho é associada às pragas não é aqui mais incongruente do que em Mateus 24:1-14. Não é objeção efetiva dizer que o evangelho nesta ordem presente nunca obterá triunfo.14 Isto é verdadeiro; mas o evangelho obtém vitórias. Tanto a espada (Hb 4:12; Ap 2:12) como o arco e flexa (Is 49:2-3) são símbolos de Deus obrando entre os homens.15 Na quebra dos cinco selos, são reveladas as medidas que Deus toma diante do fim, para liderar a plenitude da salvação e o juízo: a pregação do evangelho e os males da guerra, morte, fome e martírio. Estas são, como se fossem, antecipações da salvação consumada e do juízo que estão contidos no livro selado.

O sexto selo nos traz o fim; mas com o rompimento do sexto selo, quando o próprio livro pode finalmente ser aberto e seu conteúdo revelado, nada acontece (8:1). Não há nenhuma dor. Ao passo que isso está de acordo com a flexibilidade do simbolismo apocalíptico de que o livro real agora desaparece da vista e seu conteúdo não é nunca mencionado, o fato de não se dar nenhum conteúdo específico ao sétimo selo sugere que tudo o que se segue, começando com as sete trombetas, constitui o conteúdo do livro. Aqui, então, começa a revelação real dos eventos judiciais e redentores que constituem a consumação.

Podemos concluir que uma interpretação futurista moderada entende as sete cartas como endereçadas a sete igrejas históricas, que são representativas da Igreja inteira. Os selos representam as forças, na história, qualquer que seja a sua duração, pelas quais Deus elabora seus propósitos de redenção e julgamentos na história, conduzindo-a ao fim. Os eventos que começam com o capítulo 7 estão no futuro e cumprirão a disposição final da vontade divina para a história humana.



NOTAS:

1. Ver M. Stuart, A Commentary on the Apocalypse (1845; 2 vols.); F. C. Porter, The Messages of the Apocalyptical Writers (1905); H. H. Rowley, The Relevance of Apocalyptic (1947).
2. Ver G. E. Ladd, Apocalyptic, Apocalypse, Bakers Dictionary of Theology, ed. por E. F. Harrison (1960), p. 50-54.
3. Ver H. C. Kee e F. W. Young, Understanding the NT(1957), p. 335-37, 453-62. A maioria dos comentários críticos modernos é escrita a partir deste ponto de vista. Ver R. H. Charles (ICC); J. Moffat (Expositor's Greek Testament); I. T. Beckwith; C. A. Scott (Century Bible); A. S. Peake; H. B. Swete (in part); M. Rist (IB).
4. Ver G. E. Ladd, The Revelation and Jewish Apocalyptic, EQ XXIX (1957), 94-100.
5. Alguns intérpretes têm tentado adaptar a visão preterista a uma abordagem conservadora. Ver A. Pieters, Studies in the Revelation of St. John (1943, 1954); R. Summers, Worthy Is the Lamb (1951). O melhor esforço é o de G. R. Beasley-Murray, em The New Bible Commentary (ed. por F. Davidson: lw.S.li, que combina os métodos preterista e futurista.
6. O mais recente comentário é o de J. Walvoord (1966).
7. Ver J. D. Pentecost, Things to Come (1958), Cap. 19.
8. Ibid., p. 295.
9. The Scofield Reference Bible, p. 1331 e ss.; J. D. Pentecost, Things to Come, p. 152.
10. Ver A. J. McClain, The Greatness of the Kingdom (1959), p. 419; C. C. Ryrie, Biblical Theology of the AT(1959), p. 355.
11. Ver H. Lilje, The Last Book of the Bible (1955); L. Morris, The Revelation of St. John, G. E. Ladd., The Revelation of St. John.
12. A ideia ocorre também em Hb 9.
13. Ver 1:14; 2:17; 3:4, 5, 18; 4:4; 6:11; 7:9,13; 14:14; 19:11,14; 20:11.
14. J. A. Seiss, The Apocalypse (1913), I, 310,
15. Esta interpretação é seguida por T. Zahn, Die Of fenbarung des Johannes (1926), II, 352 e s. H. Alford, The Greek Testament (1877), IV, 613 e s.; J. Schneider, Die Of fenbarung Jesus Christi (1942), p. 56 e s.



Autor: George Ladd
Trecho extraído da Teologia do Novo Testamento do autor, pág 573-577. Editora: Hagnos